quarta-feira, agosto 03, 2005

Deste tempo me lembro/(de tantos tempos já fui!)

Deste tempo me lembro
(De tantos tempos já fui!)


Deste tempo me lembro.
Neste tempo vivi.
Este tempo também eu sou.

(De tantos tempos já fui!)

Deste tempo, desta praça, destas quintas-feiras,
deste mercado, desta gente eu fui e sou.
Desta gente que nós fomos e somos.

Panelas, “amontolias”, formas para queijo.
Gente!
Homens de barrete e jaleco, mulheres de lenço e xaile
(alguns e algumas descalços e descalças).
Burricos a servirem de montaria… e de companhia.
Era a vila nova. de Ourém. Vila viva às quintas-feiras.

E para casa, nas aldeias ao redor, se levavam as sardinhas,
que da Nazaré vinham
e para toda a semana se mercavam;
de salmoura se guardavam
que até à quinta-feira da semana que logo viria
era preciso que chegassem.

Nalgumas das casas,
em muitas casas,
era preciso partir e repartir;
o homem ficava com o melhor bocado,
que ele era quem partia e repartia
ainda que fossem as mãos da mulher
que partissem e repartissem,
porque era ele quem trabalhava de sol a sol
como se não fosse de sol a sol o trabalho da mulher,
que fazia a lida da casa,
que tratava do gado e da horta,
e cozia o pão
e fazia a vindima
e organizava a descamisada,
e ainda tempo lhe tinha que sobrar
para ajudar o “sê home” nas fainas que
(dizia-se...)
dele seriam.

Descalços andavam os gaiatos.
Descalços e ranhosos.
Pés nus,
frios,
magoados,
feridos,
depressa duros,
crostas,
calejados,
preparados para as pedras e as silvas
a caminho das escolas
onde escolas havia, e só para aqueles que às escolas iam.

Depois,
depois foi o salto,
a fuga para as Franças e Araganças,
a recusa da estagnação,
da resignação,
da pobreza,
do cerco,
da guerra,
do que não se queria que continuasse
mesmo sem se saber o que não se queria
e também sem se saber o que se queria
a não ser que era preciso ir, que era vital partir.

E como os tempos mudaram!
Como sempre fizemos,
as mulheres e os homens de todos os tempos:
mudamos os tempos!



Deste tempo me lembro
(De tantos tempos já fui!)



Vivi atravessando estes tempos que fomos e somos.
Deste tempo me lembro.
E gosto de o lembrar como tempo vivido.
Com saudade. Com nostalgia.
Mas olhando-o de frente.
Com os olhos de hoje.
Com os olhos dos homens e das mulheres
de hoje e de amanhã.

Sem comentários: