A santa resiliência
18 de Junho de 2021 Público
Antes que o jargão da tripla aliança
política, económica e mediática nos submerja com a sua capacidade injuriosa e
de cancelamento da crítica, devemos cuidar das palavras, observar a sua vida e
perceber o sentido das suas inflexões. Num tempo que nos parece hoje já
distante, mas do qual, se nascemos nos últimos quarenta anos, somos ainda
contemporâneos, a palavra “progressista” teve uma considerável fortuna e
sinalizava o “imaginário” político (“imaginário” é, aliás, outra palavra
defunta).
Ser “progressista” era acreditar no
progresso. Não no progresso tecnológico ou científico (muito embora esse também
fizesse parte do processo), mas num progresso que tinha uma escala muito mais
ampla: a do curso inelutável da história em direcção à “justiça” social e à “emancipação”
política. “Progressista” era o termo condescendente usado pelos comunistas para
nomear quem não se comprometia com lutas revolucionárias, mas também não estava
do lado das soluções conservadoras ou até reaccionárias.
Nesse jargão outrora dominante, ser
progressista significava olhar em frente, em direcção a um futuro radioso, em
oposição aos reaccionários, que olhavam para trás, para um passado geralmente
mitificado. Quando o progresso e o mundo por vir em vez de inspirar confiança e
mobilizar a acção começaram a gerar o medo, ser progressista perdeu a condição
de título a reivindicar.
A herança dos antigos progressistas
reside hoje num pensamento que, pelos critérios de antigamente, seria
considerado reaccionário (como classificar muitas das lutas identitárias e
ecológicas?). Esta inversão de valores constitui um enorme desafio às
representações baseadas na topologia que divide o espaço político entre
esquerda e direita.
Hoje, que a palavra “revolução” passou
por uma zona demoníaca e tornou-se depois uma ruína inerte, um outro
“re-” substituto entrou em cena e triunfou. Comecemos por uma aproximação
negativa: não é “resistência”. Resistir era a atitude do “antes quebrar que
torcer”, era um heroísmo com uma dupla face: ou era épico ou trágico. A atestá-lo,
aí estão, por todo o lado, os monumentos e os “lugares de memória” que celebram
os “heróis da resistência”, ao serviço do uso que em cada momento se faz da
história.
Um discurso do presidente francês, Emmanuel
Macron, pronunciado no dia 9 de Novembro de 2020, pelo cinquentenário da
morte do general de Gaulle, indica-nos qual é o novo “re-” que revogou a
“resistência”. Nessa ocasião, Macron, com a eloquência francesa que serviu
durante séculos como medida da “civilização”, saudou o “espírito de
resiliência” do general. E assim passou de Gaulle a herói da “resiliência”
francesa. Foi uma operação “revisionista” sem grandes custos: bastou a
substituição de uma palavra por outra, muito mais actual. A República ganhou
assim o seu terceiro “re-”, caducado que foi o tempo da revolução e fora de
moda em que caiu a resistência.
Os novos tempos são pois os da
resiliência. Do Atlântico aos Urais e para além, da costa leste à costa oeste e
vice-versa. Temos a nova palavra-maná pronunciada a toda a hora pelos políticos
democratas (sim, porque nos regimes ditatoriais os opositores não julgaram
ainda adequado substituir a resistência pela resiliência, e os ditadores movem-se
noutro campo semântico). Basta ouvir os nossos políticos para perceber que a
resiliência se tornou uma ideologia: a ideologia do sofrimento e da
infelicidade que salvam e purificam. O resistente estava disposto a quebrar; o
resiliente é maleável, adapta-se a tudo, não tenta alterar nenhuma ordem, mas,
pura e simplesmente, fazer o jogo da ordem presente para daí retirar ganhos.
1 comentário:
A palavra que me provoca calafrios...
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