-
Edição Nº2143 - 23-12-2014
Férias de Natal
Depois de um ano inteiro a olhar o televisor e a ver
nele, dia após dia, imagens (ainda que muitas vezes desfocadas e sempre
insuficientes) de um País empurrado para a penúria e de um povo condenado à
miséria por um punhado de gente a mando do estrangeiro, fica-se cansado. E,
porque se fica cansado, a apetência de uns dias de férias a coberto da quadra
natalícia surge como uma miragem convidativa. Não, neste caso, umas férias como
são costume, esvaziadas de tarefas, com horas e horas aparentemente livres:
aliás, isto de fingir saber do País e do mundo através da televisão, mesmo com a
certeza de que se está a usar uma fonte inquinada, torna-se uma espécie de vício
que subsistiria até para lá de um eventual fim da obrigação. Mas, pelo menos,
uns dias de escolha mais livre, desobrigada de seguir as peripécias do caso BES,
da escandaleira dos submarinos, da desvergonha provocatória do depósito de um
milhão de euros na conta do CDS-PP a coberto de um pseudónimo literalmente
porcalhão, coisas assim. Seriam então uns dias em que fosse possível optar por
programas apetecíveis, que também os há embora pouco nos pareça: as emissões do
«Visita guiada» na RTP2, entrevistas em «Palavra de escritor» na TVI24 ou no
«Ainda bem que viestes» na RTP Informação, decerto outros mais, embora não nos
canais chamados abertos e de maior audiência, estes em princípio especialmente
dedicados ao despejo de telelixo em nossas casas mas, reconheçamo-lo, com
momentos de abrandamento e até de excepção, pois a graça dos céus pode descer
até aos recantos mais fétidos. Seriam, pois, umas férias caracterizadas não pelo
lazer puro e simples, mas sim por uma espécie de selecção higiénica e saudável,
o que já não seria nada mau nos tempos que vão correndo e no chão que vamos
pisando.
Uma triste partilha
Acrescente-se um pormenor: até já havia sido feita a
escolha de uma espécie de prato principal para essa depurada dieta televisiva.
Tratava-se de «A Taxista», uma série transmitida pela RTP2 em quatro dias
consecutivos ao longo da passada semana. «A Taxista» é uma série italiana agora
em transmissão repetida, injustamente desprezada quando da estreia entre nós,
que exibia uma dupla qualidade pouco frequente na televisão portuguesa: ser
europeia e ter qualidade. Não se dirá que é uma obra-prima, mas nem a vida em
geral nem o quotidiano do telespectador pode ser feito de obras-primas: «A
Taxista» tem a frescura da ligeira comoção, um certo sabor a autenticidade que
se diria ainda herdado do cinema italiano do imediato após-guerra, e as ligeiras
pinceladas com que nos remete para o quotidiano de uma Roma de classe média
baixa, de gente de trabalho, são convincentes. No episódio final tem concessões,
mas paciência!, ainda assim «A Taxista» seria um bom momento das tais
projectadas férias. Bem se repete, porém, que o homem põe e alguém dispõe: cedo
aconteceu o desastre. Na passada quinta-feira, quando incautamente se passava
por um noticiário depois de se haver evitado o depoimento de um dr. Sobrinho,
mais uma declaração do dr. Passos, mais uma bazófia do dr. Portas, eis que sobre
nós salta a notícia: numa localidade lá para Viseu (e decerto noutras mais, é de
crer) as férias escolares de Natal não são inteiramente cumpridas, os garotos
continuam a ir lá, dia após dia, para comerem uma refeição que ali continua a
ser servida. Assim evitam a fome que os ronda. Mas há mais. E pior. Com eles vão
também muitos pais que desse modo, e provavelmente só desse modo, conseguem
aceder a uma refeição diária. Tenta-se, mas não se consegue imaginar, entre
outras coisas, o que essa tristíssima camaradagem entre pais e filhos pode
resultar na relação específica entre eles, agora e no futuro. Tenta-se adivinhar
com que sentimentos os pais vão com os filhos partilhar o que é de facto uma
esmola. Tenta-se perceber qual o grau de infâmia que caracteriza quem conduz o
povo a situações destas. E arrepia pensar em férias de Natal assim.
Correia da Fonseca
1 comentário:
Férias assim e assado, perto dos trópicos negros, perto dos picos brancos, longe das salas de aula, longe dos tabuleiros das cantinas! Férias, porque ninguém nasceu só pra trabalhar!... E digo mais, a nossa luta, deve ser por uma sociedade de lazer!
Parece que não estamos em tempos disso, os ventos empurram-nos para meras mulas de nora, burros de galés! Que ao menos saibamos fabricar a revolução, picados pelo sabor verde dos parreirais que rodeiam o poço ou pelo sal das ondas que embalam o ferry!
Estou tão poeta! Mesmo com um pesado fardo às costas e um remo em mãos, sinto-me em férias! Será que sou burro?! Escravo?!
Serei! Mas estou salvo pela poesia e pelos abraços, como este que aqui deixo!
Enviar um comentário