5. O princípio e as suas privatizações
ou
Os fundamentos e algumas fundações
O princípio do direito à cultura
Ter direito à cultura é ter direito ao acesso e ao usufruto de um património que é da Humanidade porque é o repositório do que gerações vão acumulando de conhecimento e de saberes que resultam da inserção do homem no meio. Como o aproveitar e como o preservar. Mas também como o olhar, como o representar, como o sentir… quando o estômago permite que se sinta algo mais do que a fome, quando a roupa e o lugar permitem que se sinta mais do que o frio, quando a experiência (que já cultura é) permite que mais liberto se esteja do receio dos outros, também animais mais fortes e ferozes.
No entanto, até certa altura da história esse acesso e usufruto não era reconhecido porque nem sequer era conhecido como direito. Porque haveria a cultura de ser acessível e desfrutada por todos, de ser um direito universal se nada mais o era? Havia os que, “naturalmente”, tinham esse acesso e desfrute e os que, “naturalmente”, não o tinham.
Ilustrando:
Em certos momentos (de passagem histórica, isto é, efémera), uns compunham e tocavam , uns cantavam e dançavam, uns pintavam, uns escreviam e representavam, para que outros ouvissem, e vissem, e lessem e vissem, e aplaudissem (ou castigassem por não ter gostado). Pagando os serviços em espécie e/ou em moeda.
Com algumas revoluções isto modificou-se. Os produtores tomaram poder nalguns sítios (nalguns sítios até tomaram o poder!), e tal reflectiu-se, também, na condição dos produtores de cultura, daqueles que traduziam o adquirido em arte, ou que arte pretendia ser, e no direito ao acesso e ao desfrute de um património universal. Ou seja, deixando esse acesso e desfrute de ser “natural” privilégio de uns mas passando a ser consagrado (o que não quer dizer que concretizado) direito de todos.
O direito e a privatização
Muito sucintamente, este era o quadro. Constitucional nalguns lugares, isto é, em pátrias que continuavam a viver em sistema de relações de produção social capitalistas mas morigeradas pela relação de forças de classe.
O Estado tinha funções reguladoras da economia para que o individual e egoísta não prevalecesse sobre o colectivo; o Estado tinha funções sociais para que a força de trabalho fosse mercadoria diferente, não só porque cria a mais valia mas também porque é mercadoria humana ou humanizada; o Estado tinha funções de estímulo e de regulamentação da produção e do consumo culturais para que o direito à cultura fosse, ou tendesse a ser, real.
O capitalismo, em coexistência forçada pela luta de classes com estas funções do Estado, esperava oportunidade para recuperar. E teve-a. E aproveitou-a. Efemeramente, porque não é o fim da História, mas teve-a e aproveitou-a.
Da privatização do sector público à mercadorização da cultura
De várias e sofisticadas maneiras se foram atacando, no Estado de classe, as funções que a classe não serviam:
- privatizações para que a regulação fosse devolvida ao mercado, ou seja, às forças económicas e financeiras;
- desmantelamento dos serviços públicos para que áreas fora da órbita do mercado para o mercado fossem recuperadas, isto é, passassem a dar lucro privado[1]… ou não teriam razão para existir;
- papel aparentemente arbitral e determinante na chamada concertação social;
- demissão de responsabilidades na informação e na promoção culturais.
Quanto ao último aspecto, que é objecto desta reflexão, o Estado começou a endossar algumas das suas responsabilidades para a iniciativa privada e para chamadas fundações criadas com os resultados da acumulação de lucros privados. E parcerias e mecenato passaram a ser formas, com tradução jurídica, de aplicar parte desses lucros tendo a contrapartida de benefícios e isenções fiscais.
Ou seja, parte daquilo que resultava da exploração dos trabalhadores, a estes e à população devolvia-se em “circo” para bem ser caldeado com o “pão” necessário. Fazendo-se isso não através de redistribuição pelo Estado, mas sim como sendo benesse, ou filantropia dos próprios beneficiários da exploração assim dispensados de encargos fiscais que o Estado poderia usar com essas ou outras finalidades que, enquanto Estado, decidisse em aplicação de políticas sufragadas.
O que, como parece evidente, coloca a cultura, como a saúde, como a educação, e outros serviços públicos, na órbita do mercado. Embora, muitas vezes, essa evidência se encubra com as capas das fundações.
[1] - é redundante, mas usa-se para bem distinguir da necessidade de todas as actividades respeitarem princípios de racionalidade económica – poupança máxima e/ou aproveitamento máximo de recursos – a que se poderia chamar lucro público…
este princípio ainda continua...
Sem comentários:
Enviar um comentário