Na ressaca da Festa
deste ano, e que desejo prolongar até à Festa do próximo ano – para o que sobejarão
temas, frases, pormenores –, na conversa fugidia do tardio pequeno-almoço do
primeiro “dia normal” depois dos três dias de Festa, a "minha opinião pública” pessoal e privada (privilégio que fruo e de que desejo a outros e outras a
descoberta e fruição) chamou-me a atenção para texto ainda não lido na azáfama
das vésperas.
Esse texto aqui fica,
agora, passada a Festa, em que tivemos a honra de partilhar a alegria (e o alívio!)
do seu autor, acabadinho de concluir brilhantemente o seu doutoramento na Universidade de
Aveiro, com a defesa de uma tese, de que espero o prometido envio para aprender... e saudar com conhecimento de cousa.
Mas não prefacio mais, com
um renovado abraço ao camarada Fausto Neves, solidário com tudo o que vive/mos
nestes dias de Setembro, que ele antecedeu com este “argumento” que tanto nos diz sobre tudo,
publicado no avante! do seu 1º dia:
- Edição Nº2231 - 1-9-2016
A «Clássica» na Festa
Não testemunhámos na primeira Festa do Avante! a presença do grande Luigi Nono, mas lembramo-nos da estupefacção com que encarámos no Jamor uma orquestra de músicos portugueses, em nesga de espaço e sombra, sob a direcção de Álvaro Salazar.
E a «clássica» foi passando pelas festas até se instalar num alvíssimo pavilhão com a orquestra do maestro Graça Moura. Daí lançou-se novo desafio: o preenchimento de uma das três noites do seu maior palco, o 25 de Abril, com amplificação do som acústico. E é nesta fase que ainda nos encontramos com os actuais protagonistas.
O PCP tem garantido assim a presença da música «erudita» na Festa, desse repertório peneirado pelo julgamento do tempo, universalizado de cada época pelo génio do compositor, emocionando-nos ainda hoje. É património de todos, usufruto a que temos direito.
Para além das teorias clássicas acerca dos benefícios da música na educação e cultura de um povo, os conhecimentos que a Neurociência abriu acerca da sua importância no desenvolvimento individual permitem-nos compreender o seu papel na evolução da espécie: no estímulo neurológico dos nossos antepassados, na interacção descodificadora entre emissor e receptor, na coesão e disciplina do grupo, mas também no desenvolvimento e refinamento das emoções retratadas ou provocadas. Com presença certa ainda nos habitats hominídeos, a música, interligada profundamente à linguagem e associada à dança, assumiu-se como poderoso símbolo de identidade cultural.
E este impulso evolutivo que sempre soube dar ao Homem manteve-se, mesmo com a especialização de funções: do músico, do bailarino e, maioritariamente, do público, criando-se o espectáculo. Seguiu-se a inevitável apropriação pela classe possidente da música de todos, que evoluía em complexidade e aprofundamento juntamente com o Homem, seu criador e seu simultâneo beneficiário, municiado assim para mais exigentes criações.
Este controlo classista continua nos dias de hoje com meios subtis e sofisticados, com claros e preocupantes objectivos. Marx esclareceu-nos acerca da apropriação das formas de Arte pela burguesia, transformando-a em pechisbeque caseiro, castrando-a da sua função social. Divisam-se hoje os efeitos, quer da supressão do estímulo evolutivo que a música sempre deu ao cidadão no funcionamento neurológico, nas aptidões funcionais para um dia-a-dia mais rico, mais sensível e mais disponível à interpretação do concerto e da vida; quer do preenchimento do vazio criado com produtos sem valor, dentro da música comercial. Se a chamada música «ligeira» possui imensos nichos de qualidade, à sua sombra são produzidos cada vez mais produtos de baixíssimo conteúdo, pobres, confrangedores, repetitivos nas suas receitas. E se conhecemos as potencialidades da prática e do usufruto da música de qualidade – de audição tão exigente quanto gratificante –, os produtos de que falávamos cultivam, na mesma lógica, a regressão da sensibilidade, a passividade, o horror à novidade. Como produtos de consumo que são, buscam a habituação, a dependência do consumidor; a ausência de curiosidade e de reflexão crítica; a reacção agressiva a qualquer saída do cada vez mais diminuto espaço conhecido, de conforto. A passividade acrítica no concerto e no desconcerto do Mundo...
Embora o chamado «pós-modernismo» crucifique estes destemperos reflexivos, felizmente que se começa hoje a sacudir a sua perigosa malha. Vieira de Carvalho denuncia a coincidência temporal da queda do socialismo do Leste europeu com o abandono progressivo da protecção dos estados às artes e, em especial, à criação vanguardista; com a promoção dos seguintes princípios: não distinção entre música avançada e conservadora, entre música erudita e popular; existência apenas de «boa» e «má» música; todos os géneros são fungíveis para agradar e divertir; o músico apenas deve saber vender o seu produto.1
Pierre Boulez aprofunda: Passarmos a falar acerca da música no plural e exibindo um ecumenismo ecléctico resolve o problema? Parece, pelo contrário, que apenas o conjurará para longe [...]. Todas aquelas músicas são boas, todas aquelas músicas são simpáticas. [...] Tudo é bom, nada é mau; não há quaisquer valores, mas cada um é feliz. [...] A economia está aí para nos lembrar, no caso de nos perdermos nesta suave utopia: há músicas que produzem dinheiro e que existem para o lucro comercial; há músicas que custam algo, cujo próprio conceito não tem nada a ver com o lucro. Nenhum liberalismo
apagará esta diferença.2
A «clássica» na Festa é marca distintiva do PCP. O recolocarmos novos questionamentos a partir do realizado é a nossa natureza. Ou não fosse o discurso musical paradigma da contradição dialéctica.
1 Cf. Carvalho, Mário Vieira de. 2007. A Tragédia da Escuta – Luigi Nono e a Música do século XX. Pág. 14. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
2 Foucault, Michel and Boulez, Pierre. 2002. On Music and its Reception. In Scott, Derek B. (ed.). Music, Culture and Society. Pag. 164. Oxford: Oxford University Press.
Fausto Neves