Ironias e vida e morte
- Público - 18 Mar 2022
- Por António Rodrigues
Ironias
sírias
Para alguém que seja dado a isto das
ironias, entre os sírios que olham agora este êxodo ucraniano para os braços
abertos da Europa e do mundo, não deixa de ser de uma cruel ironia que três
semanas de guerra tenham feito de um povo ucraniano flagelado pela guerra, o
povo mártir escolhido — porque até nas tragédias ter a cor certa e a
localização geográfica adequada ajuda à construção mitológica do horror — quando
os sírios andam há 11 anos a desviver nas bolandas de um conflito que não lhes
sai de cima — e cruel das ironias, pode ainda recrudescer, enquanto os
holofotes mediáticos apontam todos para um só lugar no planeta. “Hoje na Síria,
mais do que nunca, os pais não têm como trazer comida para casa. Os seus filhos
vão para a cama de barriga vazia todas as noites”, denunciou esta semana o
secretário-geral da organização humanitária Norwegian Refugee Council, num
apelo urgente a que a Terra não se esqueça da Síria por mais que a Ucrânia nos
deixe a todos tão ocupados. Temendo Jan Egeland, tal como escrevia um dos
maiores irónicos de todos, Mário Cesariny, que acabemos todos a encolher os
ombros, porque “afinal o que importa não é haver gente com fome/ porque assim
como assim ainda há muita gente que come”. Mesmo quando os sírios com fome
sejam quase sete milhões, totalmente dependentes da ajuda internacional, e
muitos milhões sobrevivam sem acesso a pão, combustível, electricidade e água
potável. Sem comida nem aquecimento quando as temperaturas vão chegar à noite
nos próximos dias a um grau positivo. “A comunidade internacional não pode
fugir do firme compromisso que assumiu”, lembra Egeland. Resta saber da sua firmeza. A do compromisso do mundo, não de Egeland.
Vida e morte
iemenita
A coisa é para ser dita de forma
simples e clara: 400 mil crianças iemenitas estão à beira da morte, de acordo
com as Nações Unidas. A guerra que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos
com o apoio dos Estados Unidos travam no Iémen desde 2014 para restabelecer o
regime que uma revolta popular derrubou (e para combater a revolta armada dos
houthis apoiados pelo Irão) matou mais de 100 mil pessoas, incluindo mais de 12
mil civis, segundo o Armed Conflict Location and Event Data Project (Acled),
ONG que colecta dados de conflitos no mundo. Mais de um ano depois de Joe Biden
ter assumido a presidência dos EUA e de ter assumido no seu discurso inaugural
“que esta guerra tem de acabar”, a guerra continua e o povo vai morrendo de
desnutrição, numa catástrofe humanitária que não tem merecido o empenho e a
solidariedade que merecia, mesmo com os muitos alertas da ONU. Aliás, como
escrevia o jornalista iemenita Shuaib Almosawa no The Intercept na
quarta-feira, “passado um ano”, do discurso de Biden, “a crise humanitária no
Iémen está, em vários aspectos, pior que no tempo de [Donald] Trump”. Apesar de
o actual líder da Casa Branca sublinhar a sua pretensão de acabar com o “cheque
em branco que Donald Trump passou à Arábia Saudita para abusos de direitos
humanos no país e no estrangeiro”, a verdade é que desde Dezembro a coligação
liderada pelos sauditas aumentou os bombardeamentos da capital do Iémen, Saana,
incluindo áreas residenciais e o aeroporto. E a crise da Ucrânia e a decisão de
deixar de importar petróleo russo traz más novas para os iemenitas, já que
Washington está a pensar em pedir aos sauditas que aumentem a produção de
petróleo. Como referiu a congressista Ilhan Omar, “a nossa resposta à guerra
imoral de Putin não deveria ser o fortalecimento da nossa relação com os
sauditas que actualmente estão a provocar a pior crise humanitária do planeta
no Iémen”
2 comentários:
Coisas muito sérias, avaliadas pelos media hegemónicos com balanças de dois pesos e metros de duas medidas...
Abraço!
Felizmente que outros critérios se levantam para denunciar a desigualdade de tratamento a situações de guerra.O hiper arrebatamento dado ao governo nazi ucraniano pela CS em contraste com o silenciamento em outros lado,é lamentável e desacredita-a completamente.Bjo
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