Morreu Isaura Borges Coelho,
antifascista que
lutou pelo direito das enfermeiras ao casamento
Morreu, nesta terça-feira, 11 de Junho, Isaura Assunção da Silva Borges
Coelho. A resistente antifascista morreu na Parede, onde residia com o marido
de há décadas, o historiador António Borges Coelho. Nascida em Portimão, a 20
de Junho de 1926, foi presa e torturada pela PIDE – Polícia Internacional e de
Defesa do Estado, pela sua actividade de resistente antifascista, que
incluiu a luta pelo direito às enfermeiras se poderem casar. Em 2002 tinha
sido agraciada pelo então Presidente da República Jorge
Sampaio com a Ordem da Liberdade.
Quando, em Julho do ano passado, António Borges Coelho falava ao PÚBLICO, em casa, sobre a
sua passagem pela cadeia do Forte de Peniche, Isaura quase não
falou, mas permanecia na mesma divisão, a ouvir a conversa, até se levantar
para desempenhar uma missão: encontrar o desenho feito por Álvaro Cunhal, que
este lhe oferecera como prenda de casamento.
E o casamento de ambos, a 4 de Janeiro de 1959, foi peculiar, porque
decorreu no Forte de Peniche, onde o futuro historiador estava detido. Em
Julho, ele descreveu a “boda” como “um acontecimento” que quebrava a monotonia
dos dias da prisão política e que foi vista como “um espectáculo” pelos outros
detidos. “Mandaram-me um fato para o casamento, só que o fato era grande
demais. O meu colega de prisão, que era alfaiate, o Mestrinho, de Fafe, arranjou-o
e eu fui de fato ao casamento. Em que consistiu? A noiva foi levada de Lisboa
pelos padrinhos e também pelos meus padrinhos. Os meus padrinhos eram o [poeta]
Alexandre O’Neill e a [Maria] Alçada Padez e os meus
cunhados eram os padrinhos da Isaura. A noiva estava de um lado com os
padrinhos, os sogros e os convidados. O meu sogro começou a andar de um lado
para o outro, dizendo que não era justo, e então lá puseram a noiva ao lado do
noivo”, contou.
Antes, já Isaura passara também pelas prisões da PIDE, depois de ter sido
presa em 1953, quando se dirigia à sede do Movimento de Unidade Democrática
(MUD) Juvenil, a que se juntara. Outros jovens, presos como ela na mesma
altura, foram libertados, mas Isaura permaneceu detida, por ter sido
identificada pelos agentes como “a casamenteira”. É que pouco antes, ao tomar
conhecimento que doze colegas enfermeiras do Hospital Júlio de Matos tinham
sido despedidas por se terem casado, Isaura encabeçara um abaixo-assinado,
dirigido ao presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, ao Cardeal
Cerejeira e ao enfermeiro-mor dos hospitais, exigindo a revogação do artigo do
decreto-lei n.º 28794, de 1 de Julho de 1938, que exigia que as
enfermeiras (e também as empregadas domésticas) fossem “mulheres solteiras e viúvas,
sem filhos”. A proibição das enfermeiras se casarem só desapareceria em 1963.
A prisão de Isaura gerou grande contestação, sobretudo ao tomar-se
conhecimento da brutalidade com que a jovem foi tratada pela PIDE, tendo mesmo
sido arrastada pelos cabelos na presença do seu advogado. Em Lisboa, circularam
panfletos exigindo a sua libertação, e no dia do seu julgamento, no Tribunal
Plenário, agentes da polícia política recorreram à estratégia corrente de
ocuparem grande parte dos bancos dedicados à assistência, para impedir que os
apoiantes da enfermeira pudessem estar presentes.
A mulher seria condenada a dois anos de prisão e depois desta decisão
continuaram os protestos. Nos arquivos da PIDE guardados na Torre do Tombo,
está um panfleto com o título “Vamos libertar Isaura Silva”, que classifica a
sua condenação como “um grave acto de terrorismo que espalhou entre nós a
indignação e o espanto.”
Isolada durante sete meses
O documento referia: “Depois de um processo monstruoso, verdadeiro atentado
contra a consciência humana e a liberdade, procuraram tirar-lhe todas as
possibilidades de defesa. Mantiveram-na isolada sete meses e dez
dias. Prenderam a irmã, também enfermeira, Hortênsia da Silva. A dias do
julgamento prenderam o advogado de defesa, Dr. Lopes Correia,
impossibilitando-a assim de apresentar o rol de testemunhas dentro do prazo. No
julgamento, a PIDE fez evacuar a sala, enchendo-a de agentes para assim
pressionar o ‘tribunal’ e atemorizar a assistência.”
Por causa das medidas de segurança, Isaura Silva acabaria por cumprir
quatro anos de prisão, em Caxias, sendo libertada em 1957, numa altura em que
pesava apenas 30 quilos, e já depois de ter estado internada por causa do seu
estado de fragilidade. Domingos Abrantes, um histórico membro do Partido
Comunista Português (PCP), conheceu-a nesta altura e tornaram-se amigos para o
resto da vida. Uma amizade “profundíssima”, disse, esta quarta-feira ao
PÚBLICO. “Conheci-a quando saiu da prisão e era uma pessoa de uma generosidade
enorme e com uma alegria de viver contagiante, mesmo nos momentos mais
difíceis. Alguém que apesar de todo o sofrimento, nem nos momentos mais
difíceis perdeu o ânimo, a coragem, a alegria e a vontade de continuar a
lutar.”
Conceição Matos, casada com Domingos Abrantes e também ela ex-presa
política, brutalmente torturada pela PIDE, descreve Isaura Borges Coelho como
alguém que teve “uma vida inteira dedicada à luta da liberdade, muito corajosa,
muito solidária e que enfrentou com dignidade e coragem a passagem pela
prisão”.
Desta vez, Conceição Matos não se refere a Isaura como “um vulcão de
energia na entrega sem limite às causas em que se empenhou”, mas foi esta a
descrição que fez, recentemente, ao ex-preso político e vereador da CDU na
Câmara de Cascais, Clemente Alves, e que ele recorda agora ao PÚBLICO. Amigo do
casal Borges Coelho, Clemente Alves refere-se a Isaura Silva como “a mulher
mais doce que se possa imaginar”, apesar da sua força. E uma presença constante
na vida mais mediática do marido. “Mesmo quando a Isaura não estava com ele,
ela estava sempre presente. Ele tinha sempre de apresentar um pretexto para
falar da Isaura, ela era como um terceiro pulmão do António Borges Coelho.”
Quando saiu da prisão, em 1957, Isaura Silva não foi autorizada a visitar
Borges Coelho na prisão, por não serem casados. Durante a separação, tenta
contactar com ele enviando-lhe cartas em que se faz passar por uma tia, mas o
esquema é descoberto pela PIDE. Os dois só puderam voltar a ver-se depois do
casamento no forte.
Delegada sindical
Membro do PCP, Isaura Borges Coelho trabalhou como enfermeira e foi
delegada sindical das enfermeiras na Maternidade Alfredo da Costa até se ter
reformado. No ano passado, a Câmara de Portimão homenageou-a com a Medalha de
Honra do Município e o título de cidadã benemérita da cidade em que nasceu.
O funeral é na sexta-feira, às 13h30, no Centro Funerário de Cascais
da Servilusa, onde também decorre o velório, a partir das 18h desta
quinta-feira.
2 comentários:
É confortante saber que ,afinal,há jornalistas honestos .Felizmente nem todos se regem pela cartilha do poder dominante.Bjo.
Porque são bem e honestamente escritas
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