Tinha decidido nada tornar público sobre este episódio sórdido Marcelino da Mata, para não gastar cera com tão ruim defunto, mas o excelente texto de Manuel Loff obrigou-me à transcrição. Excelente o texto, só que não concordo (embora compreenda muito bem o desabafo) com o final. Não há pachorra? Temos de ter pachorra, toda a pachorra e mais do que pachorra!
Uma história oficial da democracia portuguesa?
16 de Fevereiro
de 2021, Público
Nas páginas deste jornal, João
Miguel Tavares (J.M.T.) lamentou que “a maior parte dos portugueses não
faça a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata” que morreu há dias, aos 80
anos. Afinal, ele era, diz J.M.T., o “militar mais condecorado do Exército
português”, por feitos cometidos durante a Guerra Colonial (e só) que Vasco
Lourenço, que o conheceu bem, assegura terem sido “crimes de guerra”
(PÚBLICO, 19.7.2018). J.M.T. limita-se a dizer que “é muito possível que tais
crimes tenham acontecido. Não sei com exatidão quais foram, mas em bom rigor
também não tenho forma de saber”. É natural: como nunca foi julgado nenhum dos
responsáveis pelos massacres de Batepá (1953), Pidjiguiti (1959), Mueda (1960),
Luanda (1961) e Norte de Angola (os contramassacres de 1961), Wiryamu e mais
quatro aldeias (1972), só para citar os mais conhecidos, seria surpreendente
conhecer em detalhe, pelo contrário, o que fez Marcelino
da Mata. O que a J.M.T. interessa dizer é que “o seu perfil é triplamente
incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da
guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril” por ter sido “um
negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; um herói do Estado
Novo; um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda
ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto,
triplamente silenciado.”
Há de tudo neste arrazoado. Nem vou
perder tempo com o último argumento; linhas abaixo, os “militares de
extrema-esquerda” passaram a ser a “revolução” como um todo ("uma
revolução libertadora tortura[va] tão barbaramente quanto uma ditadura"),
que é como quem diz que qualquer espancamento que ocorra hoje em Portugal é
responsabilidade da democracia. O que é inaceitável é esta insinuação
manipuladora que uma pretensa narrativa oficial da democracia silencia
a guerra e o colonialismo! Como se fosse incómodo saber que “um
guineense preferi[u] Portugal ao PAIGC”, que colonizados lutaram do lado do
colonizador contra quem lutava contra o colonialismo. Onde está a novidade? Não
foi o goês Casimiro Monteiro um dos assassinos de Humberto Delgado em 1965?
Também ele “preferiu Portugal” à democracia.
Se a preocupação de J.M.T. é o
reconhecimento do valor dos combatentes africanos na tropa colonial portuguesa,
que lugar acha ele que devem ter na memória da democracia os Flechas
organizados pela PIDE, sob a direção do inspetor Óscar Cardoso? Falemos das
operações em que se envolveram! Em 1992, quando Cavaco, por proposta do Supremo
Tribunal Militar, louvou Cardoso por “por serviços excecionais e relevantes”,
Francisco Sousa Tavares descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada
um de nós. E eu devolvo-o [a] essa trupe de generais e de almirantes” (DN,
14.11.1992). Falemos de história oficial, a escrita por Cavaco! Já
lançado, porque não propõe J.M.T. à França, à Holanda, à Bélgica, à Rússia, à
Polónia, à Ucrânia, à Croácia, à Lituânia que homenageiem (nestes três últimos
casos, é verdade, já o fazem...) os voluntários (salvo os que foram à força)
das Waffen-SS e da Wehrmacht que, durante a II Guerra Mundial,
lutaram ao lado dos nazis contra os seus próprios compatriotas, muitos deles
envolvidos nas operações de extermínio de judeus, ciganos, comunistas,
resistentes?
Não faço ideia quanto a J.M.T. lhe toca
sinceramente o caso de Marcelino da Mata. Percebe-se é que as vítimas dele nada
lhe dizem. Na realidade, há um só objetivo em tudo isto: insinuar que a
democracia portuguesa inventou uma história e a tornou oficial. O
homem que Marcelo nomeou para o oficialíssimo cargo de presidir às cerimónias
do Dia de Portugal (2019), um dos opinadores profissionais que mais espaço tem
para se ouvir a si próprio, há muito que faz este número do outsider
incómodo, debitando a mesma cartilha bolsonarista da ditadura cultural da
esquerda que silencia a verdadeira memória do passado.
Também aqui, novidade zero: é o que
desde 1945 fazem as direitas extremas ao falarem de uma história dos
vencedores da II Guerra Mundial, como se em Nuremberga os Aliados tivessem inventado
os crimes contra a Humanidade praticados pelos nazis, como se Auschwitz
fosse uma invenção dos sobreviventes dos campos, como se o fascismo
fosse uma invenção dos antifascistas e os anticolonialistas tivessem
inventado o colonialismo. Já não há pachorra!
4 comentários:
Tem que se ir mais além do o "já não há pachorra"! temos mesmo de perder a pachorra e denunciar, denunciar, denunciar! como tu continuas a fazer neste blog teu
Denunciar e desmontar todo o branqueamento dado aos crimes e violações contra a humanidade é vital.Haja pachorra,haja memória.O coronel Jaime Neves,perante os massacres de Tete,disse :"Nunca houve guerra sem mortandade.O mal é da guerra,e de mais ninguém."Revela bem a mentalidade dos criminosos,daí,a construção da verdade.Bjo
Neste particular, eu presto homenagem a todos os soldados portugueses que combateram na Guerra do Ultramar, desculpem.
Abraço
Crimes de guerra, claro que os houve: UPA - Norte de Angola 1961; Wiryamu, Tete, 1972.
Mas não posso deixar de respeitar soldados portugueses que, numa operação de alto risco, vão resgatar a um país hostil, portugueses que estavam em cativeiro ... isto não nos envergonha, digo eu ...
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