POR QUEM OS SINOS DOBRAMr
Assim como “nenhum homem é uma ilha” — escreveu-o há séculos o poeta John Donne sem nunca ter sido desmentido —, nenhum homem pensa sozinho. Para continuar num registo “citacional”, mas sem citar Derrida, recorro à célebre frase que terá sido proferida por Bernardo de Chartres: “Somos como anões aos ombros de gigantes.” Naturalmente, e digo-o en passant (e em francês), a frase só é célebre para quem a conhece. Bernardo referia-se aos Antigos, mas apenas por ter vivido no século XII. Nós temos uma panóplia de escolha maior, dado já estarmos no século XXI, embora nos devêssemos espantar por, tanto tempo passado, à imagem do humanista de Chartres, continuarmos a referirmo-nos a Platão como se nos tivéssemos cruzado com ele anteontem numa ágora qualquer. Sei, claro, que mais fácil será ouvir citar Marques Mendes do que o filósofo de “A República”, o que diz muito sobre os tempos. E os tempos não vão para grandes voos. Não é pessimismo, é realismo. Veja-se o caso de Greta: vai de barco. Diz-se que Cristo caminhou sobre as águas por saber o caminho das pedras. A jovem preferiu poupar nas pegadas e veleja até aos EUA. O propósito é provar que há alternativas às poluentes máquinas voadoras. Vai num iate high-tech, acompanhada pelo pai e por uma tripulação de topo, sem cozinha nem WC. Se somarmos os custos ambientais que resultam de tal viagem, incluindo as viagens aéreas feitas para a preparar (mais as que serão feitas pela nova tripulação que vai lá buscar o “Malizia II”), facilmente se conclui que teria saído mais barato ao planeta Greta ter comprado um bilhete de avião. “É só fazer as contas”, como rematou um dia Guterres, que, aliás, foi quem a convidou para a cimeira da ONU. Mas... e a comoção? As lágrimas? A boa consciência que se alcança por via da coragem da miúda que até parece que enjoa? E a horda de sentimentalistas que não desiste do luxo da emoção sem pagar nada por ela (lembrando o sempre cortante Oscar Wilde)? Andamos nisto. Rasteiros. Rasteirinhos. Gigantes, viste-los. Por cá, nem sequer nos sobram as marés e os marinheiros, e as metáforas poéticas viram-se substituídas por rábulas futebolísticas. Ouça-se o primeiro-ministro sobre a greve dos camionistas. Os meios usados pelo Governo foram exagerados? “É o mesmo que, quando no fim de um jogo de futebol uma equipa ganha 3-0, perguntarem se precisava de ter tantos defesas.” Resposta digna não digo de Platão mas decerto de Golias. _____________________________________________
E PORQUE "ISTO ANDA TUDO LIGADO", NÃO RESISTI A TRANSCREVER E A IR BUSCAR "ISTO":
- Edição Nº2386 - 22-8-2019
Que linda barquinha!
Em miúdo, havia uma cantilena de um jogo que rezava mais ou menos assim. «Que linda barquinha, que lá vem, lá vem! É uma barquinha que vem de Belém!»
A lembrança foi imediata quando vi uma das muitas notícias sobre a viagem de Greta Thunberg (a jovem sueca que é o rosto visível da chamada Greve Climática) até Nova Iorque, onde discursará na Cimeira do Ambiente a 23 de Setembro.
Dá-se o caso da jovem, catapultada a estrela mundial, ter decidido não ir de avião por causa da, indesmentível, pegada ecológica desse meio de transporte e optado pela via marítima.
Nada haveria a registar, não fosse dar-se o caso de os poderes deste mundo, que ela diz contestar, lhe terem facilitado uma viagem num catamarã de luxo (um iate que, segundo o Público, custará mais de 4 milhões de euros), tendo como tripulante um dos netos do Príncipe do Mónaco.
A decisão – tomada vá-se lá saber onde e por quem – foi transformar esta viagem, que poderia ser feita num normal cruzeiro regular por pouco mais de mil euros e em menos tempo, numa aventura, numa autêntica epopeia, que até tem direito ao acompanhamento permanente de um realizador de cinema.
Afogado na sua crise sistémica, incapaz de encontrar soluções que lhe permitam mais do que fôlegos temporários, o capitalismo procura arranjar distracções, elementos dispersivos e heróis de ocasião.
O dramático é que os problemas ambientais existem mesmo, e enquanto as mãos escondidas que manobram as marionetas encenam o próximo filme, com potencial para garantir uns milhões de bilheteira, o modo de produção capitalista está a atirar o Mundo para um abismo, colocando, de facto, em causa a Natureza e a nossa casa comum.
A esperança vem de sabermos que só quando se puser em causa o capitalismo este filme pode ter um final feliz. Nós sabemos o caminho!
João Frazão
1 comentário:
A cantilena ,que eu brinquei e cantei tantas vezes,era assim:"Que linda falua que lá vem,lá vem,é uma falua que vem de Belém.Peço ao Sr. barqueiro que me deixe passar,tenho filhos pequeninos não os posso sustentar.Passará.passará,mas algum ficará."E lá iam os jogadores ficando reféns.Nesta folclórica propaganda milionária,haverá muitos "reféns"que ficarão cativos nas malhas que o capital defende.O pior,e é como o Frasão diz,é que os problemas são reais.Bjo
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