Saúda-se o reaparecimento do Som da Tinta. Não da livraria e editora que tão bons momentos (anos) nos fez passar. Do blog que nasceu com ela e teve... descendentes. Reproduz-se esse regresso:
_____________________________________________________________Desde 2013 que este blog estava silencioso. No dia de hoje, 10 de Agosto, retomamo-lo. Porque é o dia de S.Lourenço e o autor da edição Som da Tinta, Onde estava Vossa Mercê nos Painéis?, no-lo lembrou. Obrigado.
Aqui voltaremos.
Santos nos Painéis
Dia 10 de Agosto é dia de São
Lourenço, diácono mártir de Roma. Segundo a minha investigação (já versada em
artigos e no livro «Onde Estava Vossa
Mercê nos Painéis?»), este santo foi pintado juntamente com São Vicente,
diácono mártir de Valência, nos famosos Painéis do Museu Nacional de Arte
Antiga.
A razão desta alegação é a de que
eram dois santos da devoção do arcebispo de Lisboa Dom Afonso Nogueira ( entre
1459 e 1464): Vicente, padroeiro da cidade e diocese; Lourenço, padroeiro pessoal
e familiar dos Nogueira (benfeitores das igrejas de S. Lourenço em Lisboa e em
Vila Nogueira de Azeitão).
.O arcebispo tinha um selo
pessoal em que figuravam os dois santos - há muitos exemplos de duplas de
santos diáconos, ou doutros santos figurados, por devoções pessoais, locais ou
conceptuais - e é compreensível que tenha desejado vê-los pintados na sua Sé,
no contexto das grandes obras que aí se faziam. Após o falecimento deste
arcebispo, essa importância e particularismo diluiu-se, e se as duas figuras
terão ainda ficado com o seu significado nas pinturas, isso será sem os seus
atributos que os identificariam indubitavelmente - por exemplo, a barca
vicentina e a grelha laurentina - para albergarem outros significados, embora
se possam ver o livro aberto de S. Vicente e o livro fechado de S. Lourenço,
pela sua função de guarda dos tesouros da Igreja de Roma.
Nas décadas de 1460 e 1470
houve modificações, de protagonistas e de pintores (não mencionáveis aqui,
merecedores de mais espaço), registam-se alterações políticas e artísticas até
à versão final que podemos ver e que se datará da conjuntura do final do
reinado de D. Afonso V, à volta de 1480, ou seja, a paz com Castela, Tratado de
Alcáçovas e Terçarias de Moura, e a tensão entre o regente Príncipe D. João (D.
João II) e as Casas de Bragança e de Viseu-Beja. O apaziguamento interno era tão necessário que este testamento político
e artístico de D. Afonso V foi pintado, como um compromisso, um pacto de Paz e
Concórdia, simbolizadas nos dois santos que comprometem os dois «partidos».
No painel central esquerdo, é o identificado infante D. Afonso, filho do
príncipe D. João e de D. Leonor, que surge entre a família real, em figura de
S. Vicente, padroeiro da união dos pais, casados no dia do santo (22-1-1470)l:
à frente, os referidos pais, atrás, os avós, o rei D. Afonso V, desmoralizado e
retirando-se da cena política, e a mãe de D. Leonor, D. Beatriz, responsável
pelo neto de reféns nas Terçarias de Moura. O infante mostra no livro a frase «o
pai é maior do que eu»,
implicando os três vivos, pai, filho e neto, pela lei
hereditária: os sucessores de D. João I detêm a lei. O futuro D. Manuel I está
também ali, ainda jovem de 10 anos, porque foi adoptado pela irmã e cunhado,
Leonor e João, e acabará por ser ele o herdeiro, por morte do infante D.
Afonso. No painel central direito, por analogia, estaria Filipe de Bragança
(primo direito do infante e da mesma idade, também falecido em jovem), em
figura de S. Lourenço (ou reciclado em S. Filipe diácono?), surgindo entre o
pai, 3º duque de Bragança, condestável de facto, que recebe o bastão de
comando, como chefe militar e príncipe soberano de apenas um joelho em terra, e
o tio marquês de Montemor, condestável nomeado, juntamente com outros nobres
(casas de Viseu, Bragança e Vila Real?). Os herdeiros de D. Nuno Álvares
Pereira detêm a força.
Estas cenas de compromisso e
divisão de poder, além de serem testemunhadas pelos oficiais régios e pelos
bispos, em segundo plano, poderão ser legitimadas por retratos póstumos dos
reis anteriores, D. Duarte e D. João I (de hábitos brancos como dominicanos da
Batalha, onde estão sepultados), D. Pedro I (de hábito branco mais escuro como
cisterciense de Alcobaça, local de sua sepultura), e do condestável D. Nuno,
beatamente ajoelhado (de hábito escuro como carmelita do Carmo, onde jazia);
para além dos demais da geração de Avis, duques e condestáveis, em vários
painéis, e assim, outros.
Os meninos em figuras de «santos»,
com barretes para não se ver que não são tonsurados, são a caução e os agentes
para que reine a Paz e a Concórdia ali inscrita, também em charada animada. Nas
dalmáticas que vestem, o «vencedor» e o «laureado», lê-se a vermelho P.A.Z., a
Paz, com cordas no painel direito, para se ler Concórdia.
São Vicente é um santo de paz, a
sua procissão no tempo de D. João I era em agradecimento à salvação do reino e
de Lisboa do cerco castelhano, não é nenhum santo guerreiro «inspirador da expansão militar no Magrebe»,
como ainda se lê no MNAA. Além disso, o trecho do Evangelho de S. João que o
santo mostra nos Painéis, é antecedido numa parte que diz: «Deixo-vos a paz, a minha paz vos
dou ...» (14:27). E quanto a São Lourenço, curiosamente, na fachada da
sua igreja em Lisboa (Palácio da Rosa) está uma placa, já de 1587, onde se lê
que se dava indulgências a quem orasse a S. Lourenço pela concórdia entre
príncipes! - coincidência ou tradição que sobrevivera?
É claro que este pacto e
equilíbrio não durarão: D. João II subiu ao trono em 1481, forçou as menagens
aos nobres, libertou o filho das terçarias em 1483, e caiu sobre as casas
senhoriais inimigas, primeiro Bragança, depois Viseu, com a execução dos
respectivos duques. No entanto, a imagem de duas figuras santificadas
sustentando a dinastia parecem sobreviver na imagética nos anjos heráldicos,
Arcanjo S. Miguel e Anjo Custódio. Já desde D. Afonso V se vêem dois anjos
segurando o escudo (convento do Varatojo, Torres Vedras), mas é com D. Manuel
I, afinal, o grande triunfador dos Painéis, que essas figuras angelicais se tornam
comuns e vão perdurar no território português, onde, excluindo tumultos e
perseguições, não houve qualquer confronto militar desde o fim da guerra com
Castela, em 1479, até à conquista de Filipe II, em 1580, por 101 anos, algo
único em toda a história de Portugal. Esta é a força e o espírito de uma obra
de arte aqui evocados.
Gonçalo Morais Ribeiro,
Agosto 2019.
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