quarta-feira, janeiro 27, 2010

Shakespeare, a economia... e Marx - 2

Páginas do diário que não escrevi e das memórias que não escreverei –( 2)
.
O convite para o colóquio, em Dezembro de 1967 ou em Janeiro de 1968, não me surpreendeu. Andava muito nessas tarefas…
Mas já me surpreendeu o acolhimento, o jantar, a vivenda que fora transformada num clube… militar e naval. Lembro-me dos sóbrios conforto e bom-gosto.
A “conversa” desenrolou-se no amplo átrio, com alguns assistentes sentados na escada e, em sofás confortáveis, estava eu, o animador…, os directores do Clube (e do convite) e Sarmento Rodrigues, ao que julgo almirante e que fora ministro da Marinha de Salazar, o que foi, para mim, outra surpresa.

Pois comecei a introdução à conversa procurando explicar as funções e perversões do dinheiro, servindo-me de Göethe e de Shakespeare. Com evidente boa receptividade e alguma estranheza.


Já houve uma certa perplexidade (e incómodo) quando, antes de passar à matéria da desvalorização da libra, na minha perspectiva, disse que aquelas citações tinham sido tiradas dos Manuscritos de 1844 (do 3º) de Karl Marx! Foi giro... e foi bom, agora, reler mais uma vez o texto todo, que talvez venha a reproduzir.

«"Com a breca! pernas, braços, peito,
Cabeça, sexo, aquilo é teu;
Mas, tudo o que, fresco, aproveito,
Será por isso menos meu?
Se podes pagar seis cavalos,
As suas forças não governas?
Corres por morros, declives, vales,
Qual possuidor de vinte e quatro pernas."

(GÖETHE, Fausto, Mefistófeles)[N10]

"Que é isto? Ouro? Ouro amarelo, brilhante, precioso? Não, deuses: eu não faço protestos vãos. Raízes quero, oh céus azuis! Um pouco disto tornaria o preto, branco; o feio, belo; o injusto, justo; o vil, nobre; o velho, novo; o covarde, valente. Mas, oh deuses! porque é isso?, isto que é, deuses? Isto fará com que os vossos sacerdotes e os vossos servos se afastem de vós; isto fará arrancar o travesseiro de debaixo das cabeças dos homens fortes.
Este escravo amarelo fará e desfará religiões; abençoará os réprobos; fará prestar culto à alvacenta lepra; assentará ladrões, dando-lhes título, genuflexões e aplauso, no mesmo banco em que se sentam os senadores; isto é que faz com que a inconsolável viúva contraia novas núpcias; e com que aquela, que as úlceras purulentas e os hospitais tornavam repugnante, fique outra vez perfumada e apetecível como um dia de Abril.
Anda cá, terra maldita, meretriz, comum a toda a espécie humana, que semeia a desigualdade na turbamulta das nações, vou devolver-te à tua verdadeira natureza."

E mais adiante:

"Oh tu, amado regicida; caro divorciador da mútua afeição do filho e do pai; brilhante corruptor dos mais puros leitos do Himeneu! valente Marte! tu, sempre novo, viçoso, amado galanteador, cujo brilho faz derreter a virginal neve do colo de Diana! tu, deus visível, que tornas os impossíveis fáceis, e fazes como que se beijem! que em todas as línguas te explicas para todos os fins! Oh tu, pedra de toque dos corações! trata os homens, teus escravos, como rebeldes, e, pela tua virtude, arremessais a todos em discórdias devoradoras, a fim de que as feras possam ter o mundo por império!"

(SHAKESPEARE, Tímon de Atenas)[N11])»

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Notas:
[10] Goethe, Fausto, Parte 1, Cena 4. Esta passagem foi tirada da trad. por Bayard Taylor, The Modem Library, Nova York, 1950 - N. do T (N. do T. - Em português, recorremos à trad. de Jenny Klabin Segail, S. Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949, pàg. 106.)

[11] Shakespeare, Timon of Athens, Act Iv, Scene 3. Marx citou a tradução (alemã) de Schlegel-Tieck. - Nota do T. (N. do T. - Recorremos à tradução portuguesa de Henrique Braga, Porto, Livraria Chardron, de Leilo & Irmao, 1913, págs. 119 e 145.)

4 comentários:

Justine disse...

E vivá literatura, que toca em tudo e tudo influencia! E vivam aqueles que têm a abertura de espírito para o compreenderem!

Sérgio Ribeiro disse...

Vivó!
E vivá economia ao serviço dos seres humanos e não da multiplicação do dinheiro de alguns!
E vivas tu!

Graciete Rietsch disse...

Como o Shakespeare percebia tanto
das perversões do dinheiro!!!!
Fiquei com uma grande vontade de ler O Rei Lear traduzido por Álvaro Cunhal que lamentàvelmente ainda não li.
Um abraço.

Maria disse...

Muito interessante...

:))

E vivas Tu!