terça-feira, outubro 30, 2012

Reflexões lentas - leis tendenciais, "factores que se opõem", "causas antagónicas", "causas contrariantes" - 3 ("argumentos de autoridade")

(...)
Por último (e por agora...), reforçando a obrigação estatutária de procurar ter sempre presente a nossa base teórica e a organização do colectivo, importa sublinhar que há que identificar conceitos e ideologia, dinâmicas e processos, regularidades e leis, tendências e contratendências, teoria e prática.

“A importância que tem de ser dada à vertente ideológica da luta de classes (a começar, evidentemente, pela assumpção de a História ser a história da luta de classes desde que, e enquanto, classes sociais existam) deve, também, ser um exercício de humildade, isto é, a convicção de que o nosso pensamento não é único e não tem de ser, necessariamente, o melhor, o acabado, o definitivo. No permanente fluir da História, a cada momento (histórico) mudam as coisas, e estas alteram o modo e o ritmo do fluir da História. Não quer isto dizer que não haja conceitos básicos, ou que não haja uma metodologia de abordagem, ou uma clara “leitura” da realidade. Quer dizer que não há modelos, que não há manuais, que não há pensamento único (ou contra-pensamento único). Quer dizer que não há receitas… a que a realidade se tenha de ajustar.”  (*)

Por isso, há que recusar argumentos de autoridade (ainda que vindos de leituras e releituras de Marx). O marxismo não tem um "antigo" e um "novo ou novíssimo testamento". O Capital, ou qualquer outra obra, nunca poderá ser, para os marxistas, um manual, uma “bíblia”. Ao "lerem" a História, e o que sobre ela se escreve ou diz, os marxistas não podem procurar receitas para a transformação do mundo. A questão é que há que transformá-lo.

(*) - O contributo de Marx para o marxismo,
S.R., edição de autor, 2012, pg.36 

13 comentários:

Anónimo disse...

A especulação financeira, que importa não confundir com o sistema financeiro, não se opõe à tendência para a queda da taxa de lucro. Ao contrário, ela acentua essa tendência.

Os capitais investidos na especulação financeira não criam mais-valia (nem aceleram a rotação do capital empregue na produção, onde se cria a mais-valia). No entanto, em conjunto, e em competição, com os restantes capitais da sociedade, também se apropriam da mais-valia que é criada nos sectores produtivos.

Assim, quando maior é o capital investido na especulação financeira, menor é a quantidade de mais-valia que é apropriada, em média, por cada capital. Ou seja, a taxa média de lucro diminui. É reforçada a tendência para a queda.

Pior ainda se o aumento do investimento na especulação se faz em parte à custa de uma redução do investimento nos sectores produtivos. Porque, nesse caso, é a própria mais-valia global que diminui – em resultado da diminuição do capital utilizado produtivamente – e que tem que ser repartida por uma quantidade, igual ou maior, de capital investido no conjunto de todos os sectores. É ainda mais reforçada a tendência para a queda.

Julgo que os defensores da tese de que a especulação financeira actua como contra-tendência do declínio da taxa de lucro cometem um erro metodológico quando confundem o ponto de vista dos capitalistas individuais que investem e são bem sucedidos na especulação com o ponto de vista do capital global, a que se refere o declínio da taxa geral de lucro.

Para esses capitais individuais especulativos bem sucedidos, a respectiva taxa de lucro – aproveitando a formulação do Sérgio no post anterior: medida como o quociente da i) diferença entre o capital-dinheiro apropriado no final do processo de circulação e o capital-dinheiro investido no início do processo de circulação e ii) o capital-dinheiro investido no início – certamente será positiva e maior que a que obtinham ou obteriam num investimento produtivo (por isso são bem sucedidos; o mesmo não sucederá com muitos outros dos mal sucedidos).

Mas o que é verdade do ponto de vista de certos capitais individuais é falso do ponto de vista do capital global. Para este último, o mesmo quociente, que determina a taxa de lucro, diminui.

Os ganhos de capitais especulativos financeiros deveram-se às perdas de muitos outros capitais do mesmo tipo (como sucede na bolsa, quando os ganhos de alguns tubarões resultam da espoliação dos pequenos investidores), sendo nesse caso apenas ganhos de transferência dos lucros de uns para outros, ou resultam de uma maior apropriação da mais-valia produzida nos sectores produtivos. Num caso como noutro, a mais-valia global não aumentou (ou mesmo diminui, se foram desviados capitais da produção). Não aumenta a mais-valia a repartir, mas aumentam os capitais que reclamam a sua parte nessa repartição. Em nada se contrariou, pelo contrário agravou-se, o declínio da taxa de lucro.

HM

Ricardo O. disse...

O comentário de HM enferma de um erro de compreensão sobre o que em termos gerais significa a criação fictícia de dinheiro (a expressão máxima da especulação).

O Sérgio não afirmou que os dinheiro aplicado em produtos financeiros, completamente desmaterializados, cria mais-valia. O que o Sérgio afirmou é que se ao lucro geral (à mais-valia apropriada, apenas na produção, realizada em dinheiro) somarmos dinheiro fictício não só haverá mais mais-valia realizada em dinheiro, como se criará uma aparência de lucro. Tenta-se criar uma interrupção na regularidade (não linear) de queda da taxa de lucro, mas como em qualquer contratendência, essa queda prossegue e acentua-se.

Na lógica de HM não existirá bolhas especulativas, que são bem conhecidas desde o final do Século XIX (bolha especulativa em torno da ferrovia norte-americana). Já que os ganhos especulativos apenas se revelam como transferência de lucros dos sectores produtivos.

Além do mais, ao contrário do que pretende afirmar o capital dinheiro aplicado na especulação financeira não retira capacidade produtiva, pois ao contrário do passado esse capital dinheiro deixou de ter correspondência material, pelo que «basta» imprimir ou gerar através de uma folha excel, através de um clic...

O Sérgio refere uma questão muito importante. Talvez até mais importante que a própria questão em discussão. A teoria marxista, por se basear no materialismo, não pode ser uma teoria estanque, acabada. Novos fenómenos económicos, novas expressões revelam novas regularidades e novos desenvolvimentos teóricos.

Se assim não fosse não poderiamos falar em imperialismo como fase superior do capitalismo, pois só foi possível compreendê-lo a partir do desenvolvimento concreto dos monopólios e dos fenómenos sociais e políticos associados.

Sérgio Ribeiro disse...

Como é minha intenção, muito tentarei aprender a partir de comentários que incitam à reflexão.
Há em HM uma falha de compreensão do que escrevi, neste e em "posts" anteriores e no meu livro, que o leva a argumentar com bugalhos ao que eu escrevi (e presumo que tenha lido) sobre alhos.
Por ter lido desatento (ou até por não ter lido o mais curial), a importância presente do capital-dinheiro fictício e creditício passa-lhe ao lado.
Como diz o Ricardo O., nunca afirmei que o dinheiro aplicado em produtos financeiros cria mais-valia. Seria erro gravíssimo!
Como nunca considerei a especulação financeira como tendo sido - exclusivamente! - o resultado de capital-dinheiro desviado de aplicações em que mais-valia é criada. Esse capital-dinheiro é - também, e cada vez mais - uma criação fictícia, desmaterializada. É "outra coisa" e não uma coisa que substitua uma existente e, perante uma encruzilhada, "solução" individual para capitalistas singulares!
E é um caminho paralelo e curto porque... a taxa de lucro se alimenta da mais valia materialmente criada e é de lei tender a cair em razão sobretudo da evolução da composição orgânica do capital.

Saudações

Anónimo disse...

O Ricardo O. tem que se libertar do feiticismo da mercadoria (aqui bem expresso no seu feiticismo do dinheiro) e adquirir a compreensão mais profunda de que a circulação monetária não deixou, de modo algum, de se relacionar com as massas de valor que são produzidas e circulam no interior da sociedade. Se acha que socialmente basta imprimir (como já sucedia no passado) ou, modernamente, carregar num clic para gerar dinheiro (em contas bancárias, na concessão de crédito ou na emissão monetária de um banco central), sem ter em conta a correspondência estreita com a circulação material das mercadorias (bens e serviços), e em especial a procura acrescida que pode ser suscitada por esse acréscimo de meios de circulação, nunca conseguirá compreender o fenómeno da inflação das sociedades capitalistas modernas.

Evidentemente, não cometo a ofensa de achar que o Ricardo não percebe que o banqueiro ao clicar na sua folha de Excel não está a criar riqueza nenhuma. Mas não estou seguro que tenha compreendido bem a diferença entre valor e expressão monetária do valor. Seria um mundo muito doce para os capitalistas, se sempre que precisassem de liquidez, por exemplo para um investimento, lhes bastasse clicar em folhas de Excel, sem alterar a expressão monetária dos valores das mercadorias e dos capitais existentes, de que se apropriam.

A utilização e as alterações na quantidade de dinheiro de papel ou de dinheiro electrónico afectam tanto a expressão monetária do valor do capital-dinheiro apropriado no final do processo de circulação como a expressão monetária do capital-dinheiro investido. Isso não tem nada a ver com a diferença entre os valores do capital-dinheiro final e inicial e a sua relação com o valor do capital-dinheiro inicial. Todas estas quantidades de capital têm a sua expressão monetária igualmente afectada pela utilização do “dinheiro fictício” (expressão do Ricardo, que eu não utilizaria).

Há uns tempos sugeri, e o Sérgio gentilmente aceitou, a publicação no blog de uma historieta em que dois comerciantes vendem sucessivamente um ao outro a mesma mercadoria, salvo erro um colar de pérolas, sempre por um preço superior ao da vez anterior. O preço está sempre a subir mas o lucro que cada comerciante obtém com a venda perde-o de seguida com a compra. Evidentemente, o lucro do conjunto dos dois é nulo, cada um só ganha o que o outro perde, mas entretanto a mercadoria está sempre a “valorizar-se”.

Se o Ricardo substituir o colar de pérolas por um activo financeiro transaccionado num mercado de capitais, por exemplo um título de dívida pública ou uma acção, poderá compreender melhor como o capital fictício (e não o “dinheiro fictício”) se pode, como neste exemplo, “valorizar ficticiamente” sem que isso represente um acréscimo de lucros para o conjunto dos especuladores (e, por maioria de razão, da sociedade). Os ganhos são, neste caso, apenas ganhos individuais na transferência dos activos de uns especuladores para outros, dentro do sector especulativo, e o Ricardo devia ter lido com mais atenção quando me faz a crítica de que só baseio os ganhos especulativos na “transferência de lucros dos sectores produtivos” (o que, gravosamente, também sucede). Ora faça lá o favor de reler a primeira frase do último parágrafo.

Adicionalmente, aquela pequena anedota, obviamente de modo muito simplificado, pode ajudar o Ricardo a perceber por que dentro da lógica do capitalismo real (e não da minha lógica) existem enormes (e inevitáveis) bolhas especulativas.

(continua abaixo)

Anónimo disse...

(continuação)

É uma grande incompreensão afirmar que se “ao lucro geral somarmos dinheiro fictício não só haverá mais mais-valia realizada em dinheiro, como se criará uma aparência de lucro”. De modo nenhum. Onde é que seria produzido esse acréscimo de mais-valia? Nos tais “produtos financeiros” (que não acusei ninguém de afirmar)? O Ricardo volta a mostrar que não percebeu bem a diferença entre valor e expressão de valor. A realização da mais-valia é somente a sua conversão em dinheiro. Não há nenhuma mais-valia adicional.

Quanto às “aparências de lucro”, a própria expressão é suficientemente esclarecedora de que se tomam ganhos fictícios por ganhos reais.

A questão fundamental, e esta observação é dirigida tanto ao Ricardo como ao Sérgio, é que a taxa de lucro que está em causa quando se fala no seu declínio é a taxa de lucro real, não apenas para alguns capitais especulativos, nem sequer para o conjunto do capital especulativo, mas para todo o capital global. Esta lei é formulada em termos de valor e pode traduzir-se para o sistema de preços. Não pode é confundir-se os dois planos de formulação, confundir-se a rentabilidade de capitais específicos com a rentabilidade do capital geral, confundir-se capital fictício (que, além do mais, se não houver cuidado em extirpá-lo, origina duplas e até triplas contabilizações) com capital real e tomar “aparências de lucros” por lucros reais a serem efectivamente contabilizados no cálculo do lucro para o conjunto do capital na sociedade. Perdoe-se a provocação, mas isso seria, simplesmente, tornar fictícia qualquer cálculo da taxa média de lucro e da sua evolução.

Saudações a ambos.

HM

Jorge Manuel Gomes disse...

Excelente post e comentários pertinentes.
Muito se aprende e apreende, aqui neste "cantinho"

Abraço,

Jorge

Ricardo O: disse...

HM, vamos verse nos entendemos...

1. A história do colar é um mau exemplo para a tua tentativa de refutar o meu comentário... Ao limitares a operação à compra e venda da mercadoria cais no erro, pois M' só uma vez se transforma em D'... esse fenómeno jamais poderia criar valor...

2. Em momento algum dei a entender que era possível gerar ou criar valor fora da esfera produtiva, sem trabalho. Apenas o trabalho, apenas a aplicação conreta da energia cria um novo valor.

3. A criação de capital ficitício na sua forma de dinheiro, sem qualquer base material é um fenómeno relativamente recente, distinto da falsificação do dinheiro, que mais não fazia que, mantendo o mesmo valor (de troca) alterava a forma/aparência de valor dada pelo preço das coisas produzidas. Hoje, o dinheiro mercadoria, sem qualquer relação material, mas sempre dependente da matéria, interfere tanto no capital para investir (D - M)como na transformação de M' em D'. É sobre esta transformação de M' em D' que se porcura criar a ideia de que será possivel contrariar a tendência da queda da taxa de lucro, sem o conseguir concretizar, é claro! Acentuando essa queda, é claro!

4. Tal como todos os restantes expedientes, bem aprofundados por Marx, no seu tempo. Todos esses expedientes, resultam no aprofundamento da crise, da incapacidade de suster a taxa de lucro.

5. “ao lucro geral somarmos dinheiro fictício não só haverá mais mais-valia realizada em dinheiro, como se criará uma aparência de lucro”. Expliquei-me mal... A mais-valia que corresponde à apropriação do valor criado, e não pago, não cresce... mas na sua realização em dinheiro, na sua concretização em lucro, assume uma aparência, uma quantidade de dinheiro superior. Não gerou mais valor, pois nesse caso invertia, de facto a queda da taxa de lucro. Não o consegue fazer... tenta contrariar, mas esfuma-se, agrava a crise, agrava a queda da taxa de lucro.

6. Posso estar a cometer algum erro de análise à opinião de HM, mas fico com a ideia que HM considera o sistema económico, ou o processo de circulação, como um fenómeno equilibrado, fechado, como se existisse um equilíbrio geral, que tudo se transforma, em que nada se perde. A economia, especialmente a economia no capitalismo caracteriza-se por não sustentar o equilíbrio, por não ter um equilíbrio geral. Muitos anos depois de Marx, Keynes, compreendeu bem parte, apenas parte, deste fenómeno. De facto, a compreensão da regularidade da tendência de queda da taxa de lucro demonstrou-o muito antes em toda a sua plenitude.

7. Ao contrário do que alguém poderá ser levado a (des)entender, esta análise não tem qualquer pretensão em identificar qualquer insuficiência ao contributo de Marx. Bem pelo contrário, pretende prosseguir a compreensão da nossa realidade, da sua história e procurar antecipar tendêcias de desenvolvimento dessa mesma realidade. Tarefa que não será possível concretizar isoladamente. Só a partir de muita pedra partida, de muita discussão, poderemos chegar a algumas conclusões, e mesmo essas nunca serão categóricas e definitivamente encerradas.

Sérgio Ribeiro disse...

Esta sucessão de comentários é, na verdade, muito valorizadora deste cantinho e até retira os aspectos polémicos de outros cantos onde talvez alguns gostassem de os ver. Pelo meu lado, como não me cansarei de repetir, procuro aproveitar para reflectir e aprender (ah! a fórmula leninista aprender, aprender, aprender sempre).
Ao ler, com idêntica disponibilidade HM e Ricardo O. não posso ser neutro. Ao procurar avaliar argumentos, também sou influenciado pelos "tons" e estilos formais da formulação... talvez mais do que pela justeza dos argumentos. HM vem explicar, vem esclarecer, vem contrapor definitivo, a partir do que considera falhas de compreensão nos outros do que ele compreendeu inteiramente, e vem colmatar com a sua indiscutível (para ele) superioridade essas incompreensíveis incompreensões; Ricardo O. argumenta, admite ter cometido erros na argumentação ou até nas posições, procura corrigi-los. Um, sobranceira e aparentemente, não beneficiará nada da troca de opiniões (até porque a sua não é uma opinião, é uma conclusão que explana e explica), o outro (e eu) procura que a troca de impressões seja reflexão valorizadora, de si e do outro.
Será isto subjectividade? Diria que é exercício e exemplos da humildade que tem de ser atitude de quem se quer marxista. Apontando, e sem tibiezas, o que considera erro mas, ao fazê-lo, admitindo que ele próprio pode não estar certo e "lendo" os outros antes de sobre eles fazer avaliações definitivas... que nunca o serão se esse outro está sempre a confrontar-se com o que rodeia como atitude e metodologia.

Ih!... que grande lençol de comenentário! Desculpem mas embalei. Logo voltarei à concepção de valor e mais-valia em Marx, àslleis da composição orgânica do capital e da baixa tendencial da taxa de lucro.

Saudações para todos

Anónimo disse...

Não, Ricardo. Não é de maneira nenhuma verdade que “a criação de capital fictício na sua forma de dinheiro” seja um fenómeno relativamente recente. Há já quase século e meio que o Marx dedicou um estudo minucioso e uma parte significativa do seu livro terceiro do Capital (que deve sair publicada no 6º tomo da Avante!) ao estudo deste fenómeno. Já nessa altura havia um amplíssimo sistema de crédito, que aliás historicamente antecedeu o próprio aparecimento do capital industrial, e um muito desenvolvido sistema bolsista, especialmente em Inglaterra. Já nessa altura havia, de forma muito extensa e desenvolvida, depósitos bancários, crédito bancário, títulos de dívida pública, capital por acções, transacção e especulação de propriedade imobiliária, especulação comercial e financeira, todo um conjunto de operações em torno de títulos representando direitos potenciais sobre a mais-valia produzida ou a ser produzida.

É evidente que hoje há novos instrumentos financeiros, como certos derivados financeiros muito sofisticados (CDS’s, por exemplo). Mas muita gente se esquece que o Marx não vivia na idade da pedra e que o capital fictício, nalguma das suas formas, que nada têm a ver com a falsificação do dinheiro, é tão velho como o capitalismo.

O Ricardo parece ter claro que, hoje como ontem (aqui não há diferença), o dinheiro que circula e “interfere” no acto de investir (a fórmula D – M não é adequada para o investimento financeiro) é o mesmo dinheiro que circula e “interfere” na realização do lucro, só muda a quantidade. Mas então não é possível que no segundo acto se comporte de modo qualitativamente distinto do primeiro.

Se a mais-valia previamente criada na produção, que pode à partida ser representada idealmente por uma determinada quantidade de dinheiro, assumir “uma aparência, uma quantidade de dinheiro superior” no conjunto das eventuais transacções especulativas na esfera da circulação, então o próprio valor do capital investido nessas actividades especulativas assume “uma aparência, uma quantidade de dinheiro superior”. A expressão dos valores em preços, através do dinheiro, afecta tanto a mais-valia como o capital investido.

O fundamental é perceber as transferências de valor que se dão nas transacções (comerciais ou financeiras). Se vender uma determinada mercadoria, por exemplo o mencionado colar, por um preço superior ao preço correspondente ao seu valor (deixando agora de lado, para simplificar, a determinação complexa desta correspondência), então a quantidade de valor que adquiro, na forma de dinheiro, é superior à quantidade de valor de que me desfiz, na forma de mercadoria. Com o meu comprador sucede exactamente o contrário. Mas a soma de valores, representados no dinheiro e na mercadoria, é a mesma, apenas variou a sua repartição entre nós. Na troca, como na especulação, como em geral em qualquer acto de circulação, nunca se altera a soma dos valores, em particular dos novos valores criados (da mais-valia), mas pode alterar-se a sua repartição.

O exemplo da história do colar é, na sua simplificação, especialmente pertinente. Porque o colar é vendido sucessivamente (M – D, D’ – M, M – D’’, D’’’ - M e assim por diante) sem nunca elevar a soma dos lucros reais dos dois comerciantes, mas o seu preço está sempre a aumentar: a tal bolha especulativa, que até neste simples exemplo, se evidencia como perfeitamente possível! O mesmo se passa nos mercados financeiros, obviamente de modo muito mais complexo, desde logo, mas não só, porque, em vez de dois, temos milhões e milhões de intervenientes e, em vez de mercadorias que contêm valor, temos títulos sem valor intrínseco, que são meros representantes de valor ou que reclamam uma participação na repartição social do valor. Diz o Ricardo que na venda do colar jamais se poderia criar valor. Certíssimo. Mas na venda dos activos financeiros sucede o mesmo: também não se pode criar valor. Não são esses os limites da analogia.

(continua)

Anónimo disse...

(continuação)

Existe na base desta discussão um grande equívoco que deve ser desfeito. Os capitais reais que são investidos na especulação, sejam ou não desviados dos sectores produtivos (sempre considerei as duas possibilidades), e que exigem, à semelhança dos outros capitais reais, lucros bem reais e não apenas “aparências de lucro”, não são nem se tornam capitais fictícios.

Se o capital-dinheiro inicialmente considerado é fictício, então, pela própria definição de fictício, não corresponde a nenhum capital real e o seu “valor” (que não tem) não deve ser considerado no cálculo da taxa média de lucro. Da mesma forma, os ganhos fictícios, as “aparências de lucro”, que nada têm a ver com lucros efectivos, como os seus possuidores se apercebem imediatamente quando tentam precipitada e simultaneamente convertê-los em dinheiro efectivo (sem prejuízo de uns conseguirem à custa de outros), não devem ser considerados no cálculo da taxa média de lucro.

O capital real, na sua dupla vertente de relação social e de valor que busca um acréscimo de valorização, é sempre material (no sentido filosófico que o marxismo deu a esta palavra). Capitais fictícios, lucros fictícios, criações fictícias, “desmaterializadas”, nada têm a ver com o cálculo e a determinação da taxa média de lucro. Aquela cujo declínio foi reconhecido pela economia clássica e que leva, ontem como hoje, inevitavelmente ao aparecimento das crises.

Se bem li, e gostaria de crer que sim, em pelo menos duas ocasiões o Ricardo diz que a especulação financeira “acentua” ou “agrava” o declínio da taxa de lucro. Com isso estou de acordo. E é precisamente por isso que lhe recuso o rótulo de contra-tendência, qualquer que seja o sentido etimológico que se dê à palavra. Muito bem aplicado, por contraste, à intensificação da exploração ou à desvalorização do capital constante, que não acentuam nem agravam esse declínio e que, pelo contrário, o debilitam e chegam mesmo a suster e inverter, conferindo à tendência de queda uma extrema irregularidade (e não regularidade como diz o Ricardo). Irregularidade característica de um sistema intrinsecamente turbulento como é o capitalismo, em que, ao contrário das ficções neo-clássicas (e em larga medida também das keynesianas), o equilíbrio nunca existe ou só pode existir fugazmente, num momento de passagem entre os altos e baixos das oscilações do sistema.

Saudações aos participantes da discussão.

HM

Anónimo disse...

A publicação do meu anterior comentário, dividido em dois por necessidade de limitação de caracteres, foi feita sem ter lido o último do Sérgio, entretanto publicado.

Se pareço arrogante e sobranceiro, mais do que a discordância franca e frontal possa sugerir, peço desculpa. Não é, de todo, a minha intenção.

Apenas me interessa "neste cantinho" a discussão das ideias. Tenho esperança que os meus interlocutores se apercebam do meu respeito pelas suas intervenções na seriedade com que analiso e discuto os seus argumentos.

Também voltarei mais tarde a estas questões, que hoje o dia é de importantes afazeres militantes.

Novamente saudações ao Sérgio e ao Ricardo O.

do HM

Ricardo O. disse...

HM,

Há muito que existe capital fictício, é verdade! mas «o dinheiro creditício não desempenha nenhum papel, ou apenas insignificante, na primeira época da produção capitalista» (Livro Segundo, tomo IV de «O Capital»).
A questão é que a forma do capital dinheiro sem base metálica, sem qualquer base metálica e dominante é relativamente recente.

Quando afirmo que a tendência de queda da taxa de lucro ser uma regularidade, não linear (como afirmei), significa que existe uma regularidade de queda, com saltos, mas que mantém um movimento de queda.

Por fim, penso que a tendência de queda acelera perante a influência de qualquer expediente que procura contrariar essa tendência. Após o salto, real ou aparente (fictício ou especulativo) a taxa de lucro acentua a sua tendência de queda. A esta questão voltarei mais tarde... preciso recarregar algumas baterias e não deixar de dar atenção a tarefas que exigem muito além do tempo que disponho...

HM, a confiança e amizade que nutrimos não impede este e outros debates. Em momento algum me senti atingido, apenas motivado para debater a aprofundar o conhecimento. Só tenho pena que não tenha sido possível desenvolver este debate (que não temrinou) de forma mais organizada.

Abraços (especial ao Sérgio e também ao HM) a todos que têm contribuido para o debate e compreensão do mundo em que vivemos, sempre na perspectiva de o transformarmos...

Sérgio Ribeiro disse...

Ao reler estes comentários (aprender, aprender sempre...) há um pormenor histórico que importa relevar.
O sistema monetário internacional prevalecente no século XX passou do padrão ouro com predomínio da libra, moeda quase internacional, para o padrão ouro-dolar (convertível), para - a partir de Agosto de 1971 - "coisa nenhuma" com o dolar inconvertível e "apalpações" e abertura de caminhos como o "écu" e, depois da deriva liberal-monetarista de 79-80, com os "mercados/capital financeiro" em demencial progresso e o facto NOVO da predominância crescente do capital-dinheiro fictício e creditício. Que não é novidade, que Marx abordou embora como "memória futura", mas que é NOVO na sua relevância e fenómeno de desmaterialização e "corte" e deconexão clara entre os circuitos real e monetário.

Ao "correr da pena", e com o gosto de estar a conversar sobre... estas coisas.

Abraços