quinta-feira, junho 12, 2014

O capital(ismo) no século xxi

Face ao enorme ruído provocado por este livro (nas esferas da comunicação que a ideologia dominante e castradora controla e estimula) resolvi escrever um pequeno artigo sobre o facto. Que  facto é! Fi-lo a 2 de Junho, e para eventual publicação.
Por alguém conhecedor do texto o ter publicado na sua página de facebook - não à minha revelia mas sem ser partilha de publicação minha - trago-o para este meu canto-repositório porque entendo ser muito importante que isto se conheça e discuta. E aqui o deixo com esta intenção:


O capital(ismo) no século XXI e duas breves notas 

Andam agitadas as inteligências (ou deveria escrever a “inteligentzia”?).
Ou seja, num léxico que se estima mais rigoroso ou adequado à nossa base teórica, a superstrutura do modo de produção capitalista anda agitada. Ora esta superstrutura é parte da consciência social que inclui os resquícios das superstruturas de modos de produção anteriores – e ainda sobreviventes em partes do planeta –, e os germes de superstruturas de modos de produção vindouros. Pelo que é a consciência social que anda agitada.
A defesa das relações sociais de produção que definem o modo de produção (a defesa dos interesses de classe dominantes e dominadores) debate-se, ao nível da consciência social, com a necessidade de encontrar explicações para o que está a acontecer. E para, dessas explicações, se retirar o reflexo-reforço para “saídas” que prolonguem a existência do que é já obsoleto, e mais obsoleto (e insuportável) se vai tornando com o agravamento das contradições intrínsecas, cada vez mais insuperáveis… à medida que se vão, aparentemente, conseguindo superar.  
Assim acontecerá porque andam agitadas as bases materiais em que assentam as interpretações e explicações superstruturais. As desigualdades sociais e assimetrias regionais, o seu agravamento, que as estatísticas mostram (ou escondem, pelo menos em parte), e que, sobretudo, as gentes sentem e sofrem, foram previstas por parte da consciência social que, pela sua leitura da história passada, pretende ser a portadora dos germes do futuro. Do futuro noutro modo de produção, em que outras sejam as relações de produção que não as de exploração, pelos proprietários dos meios de produção, da força de trabalho tornada mercadoria, tão estritamente mercadora quanto o permita a(s) correlação(ões) de forças.
Por isso mesmo, Marx como que regressou a um papel importante, ao nível da consciência social, não porque a dinâmica histórica-social lhe tivesse vindo dar a razão que se apregoava que teria perdido em definitivo, mas porque essa dinâmica veio, com a sua objectivação, mostrar que a leitura de Marx do processo histórico continua a ser relevante, pertinente, indispensável, o que é diferente de profética e, diria, fatal. 
Esta fase de crise que o capitalismo desenvolvido está a atravessar veio exigir que se regressasse à leitura e ao estudo de Marx. Para perceber e ajudar à transformação pelos que querem transformar. Acrescentando-se, e já não de Marx, a frase (que é muito mais que uma frase!) que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária.
Por isso mesmo, pretende-se, a partir da superstrutura capitalista, diminuir a força desse inevitável regresso, pretende-se, ao não poder negar a sua (im)pertinência, encontrar-lhe antídotos ou pervertê-lo.
Todo o enorme barulho à volta do livro Le Capital au XXIème. siécle, de Thomas Piketty, editado o ano passado, e o seu aproveitamento, mostrará essa intenção e revelará que o seu impacto mediático não é inocente ou fruto da “qualidade científica”, mas sim da oportunidade político-ideológica. O que, para nós, se tornou evidência gritante com a edição em inglês e a polémica que levantou em várias revistas e jornais… da especialidade.
A esse debate não se pode fugir. O Expresso e outras publicações portuguesas vieram juntar-se ao coro, não por “moda” mas porque fazem parte da dita superstrutura que se fecha numa ausência de alternativa para o capitalismo (o tratamento dado às resposta de Eugénio Rosa[i] é elucidativo, ao ignorar as respostas às perguntas que lhe foram feitos para compor o leque de opiniões de “economistas portugueses divididos”… economistas, sim, mas “selecionados”, antes e após as respostas dadas!).
Apenas queria deixar duas notas:
·        Capital, tal como Marx o definiu e que, como conceito, serviu para estruturar a sua obra-mestra (O Capital), que Engels completou a partir de manuscritos, não é o que Piketty trouxe para o seu livro[ii] mas sim uma relação social de produção antes das suas formas ou expressões fenoménicas.
·         Sendo evidência irrecusável o agravamento das desigualdades sociais e assimetrias regionais, provocado pela dinâmica capitalista, a procura de “saídas” pelo lado da distribuição dos rendimentos (corrigida fiscalmente) serve, só ou sobretudo, para esconder que a distribuição é determinada pela relação entre os seres humanos na produção[iii].   

2 de Junho de 2014

[ii]  - (…)when I speak of “capital” without further qualification (…) Capital includes all forms of real property (including residential real estate) as well as financial and professional capital (plants, infrastructure, machinery, patents, and so on) used by firms and government agencies.

[iii] - Marx, em carta a Engels de 27 de Abril de 1867, escreveu que «o que há de melhor no meu livro (O Capital) e aí repousa toda a compreensão» foi ter encontrado, no trabalho, o seu carácter duplo, o dualismo que se exprime em valor de uso e em valor de troca, e ter tratado a mais-valia independentemente das formas particulares (lucro, rendas, juros, despesas) que viesse a tomar nas metamorfoses do capital que, como relação social, nelas se materializa; acrescentava que «o estudo dessas formas particulares da mais-valia, quando confundido com o estudo da forma geral à maneira dos economistas clássicos, dá uma misturada informe», uma verdadeira salada como é possível também traduzir... E Marx confessou “ter suado as estopinhas para chegar às próprias coisas, quer dizer, à sua conexão”. (O Contributo de Marx para o marxismo, S.R., 2012)


4 comentários:

Jorge Manuel Gomes disse...

Viva Camarada Sérgio,

Confesso que já aguardava, à algum tempo, um post sobre o assunto.
Será que vale a pena ler Piketty?
Ou para nós, marxistas, é uma leitura, digamos, "descafeínada"?

Aguardo por mais.
Um grande abraço, desde Vila do Conde,

Jorge

Sérgio Ribeiro disse...

Eu preferiria reler o Manifesto e de novo algumas partes de O Capital, o propriamente dito, da autoria do senhor Karl Marx!

Abreijos para Vila do Conde

Sérgio Ribeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Graciete Rietsch disse...

Grandes lições e grandes estudos nos são propostos!!!!! Só que eu já estou demasiado cansada e vou lendo com atenção, aprofundando alguns conhecimentos mas, embora compreenda para mim, não me sinto capaz de os transmitir. E bem preciso era agarrar nesta juventude e ensiná-los a aprender.
Obrigada pelas lições. Um beijo.