Opinião
(vinda de quem vem, que se subscreve e sublinha)
Demasiado
lampeiros
para serem sérios
20/06/2015
- Público
Então
como é? O país está mal ou não está? Está. Então deixem-se de salamaleques
politicamente correctos.
A língua portuguesa está cheia de
palavras certíssimas para designar quase todas as cambiantes do comportamento
humano. Escritores como Vieira, Bernardes, Camilo, Eça e Aquilino, levaram-na
tão longe, que em português tudo se pode dizer, todas as infinitas flutuações
das pessoas encontram uma ágil palavra para as designar.
Agora
que a nossa bela língua está a ser atacada por todos os lados, na sua
ortografia, na sua complexidade vocabular, na sua riqueza expressiva, é sempre
bom encontrar um refúgio nos falares antigos, ou naqueles que pouco a pouco
estão a ser esquecidos por falta de uso. A semana passada falei de
“tresvaliar”, palavra de Sá de Miranda, e esta semana Fernando Alves na TSF fez
uma crónica sobre “surdir”, palavra usada por Camilo (sempre ele) e Eça, tudo
palavras esquecidas.
O
que se passa hoje é como se, invisivelmente, se estivesse a realizar uma das
funções essenciais que Orwell atribuía ao Big Brother, que era tirar todos os
anos algumas palavras de circulação, porque sabia que é mais fácil controlar
pessoas cujo vocabulário é restrito e que, por isso, tem dificuldades em
expressar-se com clareza e riqueza e, em consequência, dominam menos o mundo em
que vivem. O incremento de formas de expressão quase guturais como os SMS e o
Twitter, apenas dá expressão a um problema mais de fundo que é desertificação
do vocabulário, fruto de pouca leitura, e de um universo mediático muito pobre
e estereotipado. Salva-nos o senhor Vice-Primeiro Ministro Portas que anda para
aí a dizer que as “exportações estão a bombar”, convencido que ninguém o acha
ridículo no seu afã propagandístico. Viva o Big Brother!
Tudo
isto vem a propósito da palavra que mais me veio à cabeça – bem sei que uma
cabeça muito deformada pelo “ressabiamento” por este governo não me ter dado um
cargo qualquer – quando ouvi o debate parlamentar com o Primeiro-ministro na
sexta-feira passada. Como ele está lampeiro com a verdade! Lampeiro é a palavra
do dia.
Lampeiros
com a verdade, neste governo e no anterior, há muitos. Sócrates é sempre o
primeiro exemplo, mas Maria Luís Albuquerque partilha com ele a mesma
desenvoltura na inverdade, como se diz na Terra dos Eufemismos. E agora Passos
deu um curso completo dentro da nova tese de que tudo que se diz que ele disse
é um mito urbano. Não existiu. Antes, no tempo do outro, era a ”narrativa”,
agora é o “mito urbano”.
Aconselhar
os portugueses a emigrar? Nunca, jamais em tempo algum. Bom, talvez tenha dito
aos professores, mas os professores não são portugueses inteiros. Bom, talvez
tenha dito algo de parecido, mas uma coisa é ser parecido, outra é ser igual.
Igual era se eu dissesse “emigrai e multiplicai-vos” e eu não disse isso. Nem
ninguém no “meu governo”. Alexandre Mestre era membro do Governo? Parece que
sim, secretário de Estado do Desporto e disse: "Se estamos no
desemprego, temos de sair da zona de conforto e ir para além das nossas
fronteiras". Como “sair da sua zona de conforto” é uma das
frases preferidas do Primeiro-ministro, e a “zona de conforto” é uma
coisa maléfica e preguiçosa, vão-se embora depressa. E Relvas, o seu alter-ego
e importante dirigente partidário do PSD de 2015, então ministro, não esteve
com meias medidas: “é extraordinariamente positivo” “encontrar
[oportunidades] fora do seu país” e ainda por cima, “pode fortalecer a
sua formação”. Resumindo e concluindo: “Procurar e desafiar a ambição é
sempre extraordinariamente importante". Parece um coro grego de
lampeiros.
Continuemos.
A crise não atingiu os mais pobres porque “os portugueses com rendimentos
mais baixos não foram objecto de cortes”, disse, lampeiro, Passos Coelho.
Estou a ouvir bem? Sim, estou. Contestado pela mentirosa afirmação, ele
continua a explicar que os cortes no RSI foram apenas cortes na “condição de
acesso ao RSI” e um combate à fraude. A saúde? Está de vento em popa, e quem o
contraria é o “socialista” que dirige um “observatório” qualquer. Sobre os
cortes nos subsídios de desemprego e no complemento solidário de idosos, nem
uma palavra, mas são certamente justas medidas para levarem os desempregados e
os velhos a saírem da sua “zona de conforto”. Impostos? O IVA não foi aumentado
em Portugal, disse Passos Coelho com firmeza. Bom, houve alterações no cabaz de
produtos e serviços, mas o IVA, essa coisa conceptual e abstracta, permaneceu
sem mudança, foi apenas uma parte. Então a restauração anda toda ao engano, o
IVA não aumentou? E na luz, foi um erro da EDP e dos chineses? Lampeiro.
Depois
há a Grécia. “Não queremos a Grécia fora do euro” significa, por esta ordem,
“queremos derrubar o governo do Syriza”, “queremos o Syriza humilhado a morder
o pó das suas promessas eleitorais”, “queremos os gregos a sofrerem mais porque
votaram errado e têm que ter consequências”, “queremos a Grécia fora do euro”.
O que é que disse pela voz do Presidente? Na Europa “não há excepções”. Há, e
muitas. A França por exemplo, que violou o Pacto de Estabilidade. A Alemanha
que fez o mesmo. 23 dos 27 países violaram as regras. Consequências? Nenhumas:
foi-lhes dado mais tempo para controlar as suas finanças públicas. Mas ninguém
tenha dúvidas: nunca nos passou pela cabeça empurrar a Grécia para fora do
euro, até porque na Europa “não há excepções”. Lampeiros é o que eles são.
Lampeiros
Este
tipo de campanha eleitoral é insuportável, e suspeito que vamos ver a coligação
a “bombar” este tipo de invenções sem descanso até à boca das urnas. O PS ainda
não percebeu em que filme é que está metido. Continuem com falinhas mansas, a
fazer vénias para a Europa ver, a chamar “tontos” ao Syriza, a pedir quase por
favor um atestado de respeitabilidade aos amigos do governo, a andar a ver
fábricas “inovadoras”, feiras de ovelhas e de fumeiro, a pedir certificados de
bom comportamento a Marcelo e Marques Mendes, a fazer cartazes sem conteúdo –
não tem melhor em que gastar dinheiro? – e vão longe.
Será
que não percebem o que se está a passar? Enquanto ninguém disser na cara do
senhor Primeiro-ministro ou do homem “irrevogável” dos sete chapéus, ou das
outras personagens menores, esta tão simples coisa: “o senhor está a mentir”, e
aguentar-se à bronca, a oposição não vai a lado nenhum. Por uma razão muito
simples, é que ele está mesmo a mentir e quem não se sente não é filho de boa
gente. Mas para isso é preciso mandar pela borda fora os consultores de imagem
e de marketing, os assessores, os conselheiros, a corte pomposa dos fiéis e
deixar entrar uma lufada de ar fresco de indignação.
Então
como é? O país está mal ou não está? Está. Então deixem-se de rituais
estandardizados da política de salão e conferência de imprensa, deixem-se de
salamaleques politicamente correctos, mostrem que não querem pactuar com o mal
que dizem existir e experimentem esse franc parler que tanta falta faz à
política portuguesa.
Mas,
para isso é preciso aquilo que falta no PS (e não só), que é uma genuína
indignação com o que se está a passar. Falta a zanga, a fúria de ver Portugal
como está e como pode continuar a estar. Falta a indignação que não é de
falsete nem de circunstância, mas que vem do fundo e que, essa sim, arrasta
multidões e dá representação aos milhões de portugueses que não se sentem
representados no sistema político. Eles são apáticos ou estão apáticos? Não é
bem verdade, mas se o fosse, como poderia ser de outra maneira se eles olham
para os salões onde se move a política da oposição, e vêm gente acomodada com o
que se passa, com medo de parecer “radical”, a debitar frases de circunstância,
e que não aprenderam nada e não mudaram nada, nem estão incomodados por dentro,
como é que se espera que alguém se mobilize com as sombras das sombras das
sombras?
Enquanto
isto não for varrido pelo bom vento fresco do mar alto, os lampeiros vão sempre
ganhar. As sondagens não me admiram, a dureza e o mal são sempre mais eficazes
do que o bem e muito mais eficazes do que os moles e os bonzinhos.