página 193-196 de Histórias ante(s)passadas - 1ª dose (cadernos de aponta mentes-11:
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OUTRA MÚSICA EM CAXIAS
Zeca Afonso e Os
vampiros
Em Caxias resistia-se. Como nas outras cadeias, que eram apenas peças do puzzle violento e re/opressivo que queria acabar com a resistência e a luta contra o fascismo, contra o colonialismo, (de quase todos) contra a exploração do homem pelo homem, resistia-se. A luta continuava.
Lutava-se de várias formas, algumas difíceis de
imaginar por quem nunca pensou sequer no que é estar numa prisão… e ser-se
livre.
Uma das nossas (pequenas mas importantes) lutas, na organização do nosso tempo, foi pela entrada de um gira-discos na sala em que nos queriam e tinham (por) seguros. Foi batalha vencida, após protestos, reclamações, persistência… luta.
Uma hora de música por dia.
Ainda não era o tempo dos CDs e outras sofisticações.
Se já não era o tempo das grafonolas de campânula e manivela, era ainda o
tempo dos discos de vinil, de 45 ou 33 rotações
Em 1964, em Caxias, os discos entravam (e saiam) na sala 2 r/c. dº com um gira-discos, ao fim do dia, trazidos e levados pelos guardas, seus fieis ( a quem?) depositários.
A família de um de nós oferecera, ou emprestara, o gira-discos,
e essa e outras famílias forneciam os discos.
Todos os discos que eram de orquestras sinfónicas de
países socialistas, ou cujos autores e intérpretes tinham nomes terminados em
off ou itch eram, por norma, impedidos de entrar, embora tivesse acontecido
passar no crivo uma Sinfonia Clássica de
Prokofief… (uma fífia dos carcereiros em função de censura?)
Podia ouvir-se música sinfónica de outras origens, e
música portuguesa de variada natureza.
Por isso, um dia entrou na sala, como novidade, um
disco de 45 rotações trazido por uma família na hora da visita, e durante esta
recomendado ao familiar. Era um disco de Baladas
de Coimbra, cantadas por um tal dr. José Afonso…
O disco tinha 4 faixas:
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1. |
"Os Vampiros" |
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2. |
"Canção Vai... e Vem" |
Paulo Armando/José Afonso/refrão popular algarvio |
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3. |
"Menino do Bairro Negro" |
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4. |
"As Pombas" |
Ouvimo-lo entusiasmados, fazendo jus às recomendações, e estávamos a escutar a última faixa, As pombas, quando a porta se abriu e entrou o Gauleiter.
Com o ar autoritário, resmungou “… o guarda disse-me que vocês estão para aí a ouvir umas coisas
esquisitas. Também quero ouvir… Ponham lá isso a tocar mais alto…”.
Por acaso era eu que estava a fazer de operador, e
deixei chegar ao fim As Pombas,
coloquei a agulha no mesmo lado, no Menino
do Bairro Negro, que encheu a sala a que depois se seguiram, de novo, As Pombas (que mal tinham pousado e já
voavam de novo até ao fim), apercebendo-nos todos que havia alguma impaciência
no pide em funções de director de cadeia. Com cuidados vagarosos, virei o disco
(para não tocar o mesmo…), e com pontaria certeira coloquei a agulha na 2ª
faixa do lado A, na Canção vai… e vem.
O gajo não aguentou mais (devia ter muito que fazer…),
e um tanto desabrido saiu porta fora, com o guarda à trela, resmungando em
jeito para o irritado “… vocês!… também
não é preciso exagerar… aquilo do puto preto é chato mas, vá lá… agora o resto…
são coisas de Coimbra… das guitarradas, das baladas ou lá o que é… e eu que
tenho tanto que fazer!…”.
A malta entreolhou-se e conteve o riso.
No que restava da tarde musical houve tempo para ouvir
mais uma vez Os vampiros. Em tom mais
baixo, moderando os sublinhados e as manifestações de entusiasmo por aquela
descoberta (para todos nós) de um tal dr. José Afonso, de Coimbra.
1 comentário:
Tempos cinzentos,mas ao mesmo tempo épicos.Tinham a juventude e a audácia inerente.Recordar é manter a memória viva.Lembro-me quando um camarada foi preso,tinha em sua casa uns discos que lhe tinha emprestado.Entre eles a orquestra de Prank Pourcel,com o título :"De Vienne a Moscou".Os pides levaram-no porque dizia "Moscou".Sub-gente cruel e estúpida.Bjo
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