Um oportuno e excelente esclarecimento (com acrescento de nota):
- Edição Nº2446 - 15-10-2020
Impasse
negocial
Os fundos da UE, para o próximo período de
programação (2021-2027), continuam a marcar o noticiário nacional. Sem que
tenha esfriado o entusiasmo com a propalada pipa de massa,
prometida no Conselho Europeu de Julho, eis
que surge a notícia de um impasse nas negociações entre o Parlamento Europeu e
o Conselho, para aprovação do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027 e do
denominado Fundo de Recuperação. Ainda que tal impasse seja provavelmente
passageiro, vale a pena perscrutar as suas causas.
À medida que se desvanece a cortina de
fumo erguida em torno do acordo de Julho, vai sendo mais percetível a sua
verdadeira natureza.
As negociações em torno
do orçamento da UE para os próximos sete anos arrastam-se desde 2018. A proposta inicial
implicava, à partida, cortes em áreas importantes como
a «coesão económica e social»(*) e a «agricultura». Alguns dos
principais beneficiários do mercado único e da moeda única recusaram-na, pois
queriam cortes ainda mais substanciais. São países que querem manter e, se
possível, aumentar os enormes ganhos que obtêm da integração (à custa do
prejuízo de outros), querendo, ao mesmo tempo, reduzir as suas contribuições
para o orçamento.
Em Julho, estes países, os (mal)
chamados frugais, obtiveram vencimento de causa. A proposta de Quadro
Financeiro Plurianual 2021-2027 aprovada no Conselho Europeu, já em plena
pandemia, levou mais longe os cortes propostos em 2018. Para acomodar esses
cortes, defendendo tanto quanto possível os «envelopes nacionais», ou seja, as
verbas que cada país recebe de fundos estruturais e da política agrícola comum,
encontrou-se uma solução: a variável de
ajustamento seriam os programas existentes em áreas como a investigação, a
saúde, o ambiente, a mobilidade de estudantes (Erasmus), entre outros.
Manta curta, tapa de um lado, destapa do outro. Caía por terra a propaganda
feita em torno de alguns destes programas. O Parlamento Europeu, que sempre os
defendeu, não quer perder a face e exige, pelo menos, a mitigação dos cortes.
Eis, em parte, a razão do impasse. Tendo em conta que países mais ricos estão
entre os principais beneficiários de alguns destes programas, talvez não seja
difícil encontrar novo ponto de equilíbrio entre as posições do Conselho e do
Parlamento.
Entretanto, em tempo de crise, precipitada
pela COVID-19, o Fundo de Recuperação
foi a cortina de fumo que serviu para esconder os cortes no orçamento.
Sucede que este fundo tem uma natureza especial. O dinheiro-extra que os países
receberem nos próximos quatro anos, ao abrigo deste instrumento, será pago mais
tarde, com redução das verbas a receber via orçamento. Para evitar este corte
futuro, que, na prática, transforma as «subvenções» em empréstimos, alguns
defendem a criação de «impostos europeus», como nova fonte de receita da UE. A
receita arrecadada com estes impostos substituiria aquilo que os países mais
ricos deviam (mas não querem) pagar para o orçamento. Opção não isenta de
contradições, que está igualmente na origem do impasse criado.
Os miríficos fundos da UE são,
cada vez mais, mero papel de embrulho de uma integração intrinsecamente
geradora de desigualdades e assimetrias.
João Ferreira
(*) Além de todo o apoio a este esclarecido esclarecimento, a
referência à coesão económica e social justifica que se lembre que a expressão nasce após a adesão de Portugal e
Espanha às Comunidades Europeias. As CE emendaram o Tratado de Roma com o Acto
Único e preparava-se o Tratado de Maastrich, enquanto se preparava a criação do mercado interno, em que avultava a livre
circulação de capitais (desde então libertina). No contexto da correlação de
forças na luta de classes, foi possível adoptar como objectivo a dita coesão económica e social a partir da
previsão inquestionável de que o mercado interno iria agravar as desigualdades
sociais e as assimetrias regionais (nestas se incluindo entre-nações). Adoptava-se,
com essa expressão, o princípio de futuras transferências para os Estados-membros
que iriam ser prejudicados pelo mercado interno e as livres circulações (sobretudo de capitais), com inclusão em
Maastrich de um fundo de coesão, “alimentado”
pelos Estados-membros que iriam beneficiar.
1 comentário:
Óptimo esclarecimento,o qual ficou mais enriquecido por quem percebe bem da poda.Bjo
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