- Edição Nº2309 - 1-3-2018
Mas as crianças, senhores?
É sabido que a guerra na Síria está longe de terminar, e é igualmente sabido que não terminará enquanto potências ocidentais capitaneadas pelos Estados Unidos se obstinarem em derrubar o governo de Bashar-el-Assad, réu do imperdoável delito de se entender muito bem com a Rússia, para esse tão nobre objectivo derramando sobre grupos efectivamente mercenários da região uma abundante chuva de dólares sob a forma de armas modernas, munições altamente eficazes e mão-de-obra bastante para a execução da empreitada. Entretanto, de ambos os lados da região fronteiriça com a Turquia, o povo curdo obstina-se no sonho de conseguir a autonomia/independência do Curdistão, seu país, objectivo de que a Turquia de Erdogan não quer nem sequer ouvir falar. Por tudo isto, e decerto ainda por mais motivos que aqui nos escapam, a tragédia instalou-se em Goutha, situada já nos arrabaldes de Damasco, a capital, e sobre Goutha se desencadeou uma intensa tempestade de bombas que mata não apenas os que combatem o governo mas também, talvez sobretudo, a população civil que dificilmente se lembrará ainda do tempo em que a Síria era o país mais tranquilo e socialmente mais avançado daquela zona. E, de entre os que morrem, serão mais numerosos os que mais dificuldade tenham em fugir, os velhos e as crianças. Quanto aos velhos, não há registo mediático de grandes comoções: afinal são velhos, já viveram uns tempos, estão maduros para a morte e são geralmente feios, mas a morte de crianças é uma dor de alma. Por isso as câmaras das televisões buscam os seus corpitos inertes para os mostrarem ao resto do mundo.
Inertes e usados
A esses momentos de reportagem move-os decerto o dever de informar. Não é, porém, um dever que venha só, digamos assim. O caso é que o governo de Damasco, que até ver é o único com a legitimidade confirmada por reconhecimento internacional, tem a fama e o proveito de ser apoiado pelos russos, esses mais-que-maus, de onde ser imputada à Rússia a responsabilidade pelos bombardeamentos aéreos a Goutha, dominada pelos rebeldes. É o pavor instalado, como se imaginará, e no meio dele estão crianças a morrer em conjunto com adultos. Atentas, as reportagens dão-nos imagens desses pequenos corpos, pois que os cadáveres dos adultos já não têm interesse informativo, e dir-se-ia por vezes só faltar que sobre essas penosíssimas imagens seja posto um letreiro com a legenda «made in Russia» a fim de tornar explícita a acusação. Entendamos claramente do que se trata: é a utilização de crianças mortas como arma no combate propagandístico que sempre acompanha os conflitos bélicos, e esse processo tem na verdade uma designação que não é simpática: é uma forma peculiar de profanação de cadáveres. Talvez os pais dessas crianças tenham sido apoiantes do governo de Damasco, mas desse crime, se de crime se trata, estão os filhos inocentes. Contudo, ali estão eles, inertes, transformados em argumentos no quadro sinistro de um conflito de facto accionado de muito longe. Inertes e usados. Sem que ninguém ou quase ninguém se dê conta dessa sua última condição.
Correia da Fonseca
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