sexta-feira, dezembro 18, 2015

O Zé e o menino Afonso Nuno

Leitor do avante! não (só...) por militância mas para ME informar e melhorar as condições pessoais para informar os outros, e/ou com eles trocar opiniões, tenho sempre a vontade de transcrever algumas das informações e opiniões publicadas. Só não o faço mais ou por falta de tempo, ou por perda de oportunidade, ou por não querer exagerar... Como seria o caso desta semana, em que vários trechos do semanário me convocaram à transcrição. A alguns não resistirei mas a este dou prioridade. Porque muito gostaria de o ter escrito. Assim:  

 - Edição Nº2194  -  17-12-2015

O Zé e o Afonso Nuno

Talvez a televisão portuguesa não tenha dado ao chamado «ranking das escolas», este ano, o mesmo grande destaque que lhe deu em anos anteriores. É certo, porém, que o noticiou com algum vagar e que até identificou «a melhor escola», uma instituição privada situada no Norte, e «a pior», uma escola pública de outra zona do País, assim confirmando que o Estado não tem vocação para ensinar meninos e que, em contrapartida, a iniciativa privada mantém o seu já muito divulgado talento para essa função social, como aliás para todas as outras desde que rentáveis.
Não consta que algum organismo federador do ensino privado tenha remunerado a notícia como facto publicitário, mas é claro que essa dimensão existiu inevitavelmente: não é facilmente imaginável que a generalidade dos pais portugueses não ambicione para os seus filhos os professores mais eficazes e uma probabilidade maior de futuro ingresso no ensino superior. Assim, não será absurdo admitir que, em face do «ranking», muitos cidadãos reflictam em quanto é adequado que o Estado sustente com subsídios o tão competente ensino privado e que decida abundantes cortes na despesa directa ou indirecta com a escola pública, essa incapaz. Sobre alguns espíritos mais minuciosos até poderá agir um outro factor ainda que meramente complementar: grande parte dos colégios privados nasceu sob a invocação de uma espécie de santo protector que figura na sua designação, ao passo que no nome das escolas públicas só está o nome de escritores ou equiparáveis, gente provavelmente agnóstica ou pior que isso. E não está comprovado que os céus se mantenham indiferentes a esse factor e se abstenham de apoiar quem esse apoio mereça. 

Sempre 
De entre a generalidade dos telespectadores que assistiram à divulgação do «ranking das escolas» permita-se que sejam destacados dois deles, ambos com a mesma idade de doze anos, mais mês menos mês: o Afonso Nuno e o Zé. Um deles gostou muito de saber que o seu colégio se classificou entre os «top ten» do «ranking», o outro sentiu-se um poucochinho humilhado porque a sua escola figurava lá para o fim da extensa lista. 
Porém, não se esgotam aqui as diferenças entre os dois rapazes. O Afonso Nuno reside numa bonita vivenda situada na periferia da cidade, o pai leva-o para o colégio no carro em que depois seguirá para a empresa de que é gestor; o Zé mora num T2 da periferia onde partilha o quarto com um irmão e vai para a escola em transportes públicos difíceis e fatigantes. No quarto do Afonso Nuno há uma secretária só para ele, computador e muitos livros que para si foram cuidadosamente escolhidos pela mãe, médica numa clínica privada; em casa do Zé há poucos livros e quanto a letra imprensa apenas jornais desportivos e números antigos de revistas «femininas» que a mãe traz das casas onde presta serviços domésticos.
Quando o Zé sente dificuldades com a aprendizagem na escola, é a mãe que tenta dar-lhe algum apoio: o pai, operário da construção civil, não tem sabedorias que lhe permitam essa ajuda; a senhora doutora ou o senhor engenheiro sempre encontram tempo e sabenças para acompanharem o estudo do Afonso Nuno. Aliás, eles prevêem claramente que o seu filho integrará, um dia, a «élite» que mandará no País a partir de São Bento ou, mais discreta e eficazmente de um gabinete empresarial; quanto aos pais do Zé, tudo quanto desejam é que os seus filhos consigam empregar-se mal acabem a escolaridade obrigatória e nunca, mas nunca, tenham de vê-los emigrar. É claro que o Zé não tem nítida consciência de tudo isto, mas apercebe-se talvez de que a escola pública que frequenta condiz bem com o resto da sua vida. Por isso não gostou de saber a sua escola na zona final do «ranking». Quanto ao Afonso Nuno, achou muito bem, até natural, que o seu colégio estivesse no topo da classificação. Acha mesmo que ele próprio, mais a sua família, mais os seus companheiros de colégio, sempre estarão no topo de tudo porque é natural que seja assim. Sempre.


Correia da Fonseca
(obrigado, Paulo)

1 comentário:

Olinda disse...

Tens razão!Normalmente leio o Avante,só ao fim de semana,mas hoje,levei-o quando fui beber café.Comecei pela crónica do Correia da Fonseca e,acheia-a extraordinária.É preciso ser "grande",para transmitir,de uma forma tão simples e clara,o que se pretende dizer.Bjo