Manuel Augusto Araújo (Praça do Bocage)
Um Concerto Património da Humanidade
|
Ontem, no teatro romano de Palmira, na Síria, a orquestra do
Teatro Mariynski, dirigida por Valery Gergiev deu um concerto que se reveste de
enorme simbolismo. Em 27 de Março as tropas do Estado Islâmico (EI) foram
expulsas da cidade pelo exército sírio apoiado pela aviação russa. Foi, até
hoje, a maior derrota que os terroristas sofreram. Significativamente, como Robert Fisk assinalou, Obama,
Cameron e Hollande ficaram em silêncio perante tão importante
sucesso que salvou uma cidade Património da Humanidade das barbaridades que o
EI aí estava a cometer, contra a população e contra um património histórico
inestimável. Aliás, enquanto as forças militares avançavam para libertar a cidade
esse silêncio foi interrompido por interposto Observatório Sírio para os
Direitos Humanos (OSDH), com sede em Londres muito activo a denunciar as
vitimas civis provocadas pelos bombardeamentos dos que combatiam para
reconquistar a cidade.
Depois de reocupada Palmira, um batalhão de sapadores russos
iniciou o trabalho de desminagem da zona histórica, armadilhada com quase 5000
artefactos explosivos. Agora estão a continuar o seu trabalho nas áreas
habitacionais.
Foram essas acções que permitiram a realização deste concerto
histórico em que se fizeram ouvir Bach, Schedrin e Prokofiev num cenário
fabuloso, homenageando Khaled al Assar, director do Museu Central de Palmira e
do seu património arqueológico que foi torturado e executado, juntamente com
outros técnicos do museu pelos terroristas, perante o silêncio do OSDH. Bem
significativo da credibilidade dessa gente sempre tão bem acolhida e acarinhada
pela comunicação social.
Lembre-se que Palmira foi ocupada pelo EI em Março de 2015. As
atrocidades habituais sucederam-se. Foram ampliadas pela destruição de vários
monumentos, como o Arco do Triunfo, o templo de Baal Samin, um deus semita, o
templo de Bel, entre outros que são considerados preciosidades impares do
património cultural mundial. Irina Bokova, directora geral da Unesco, afirmou:"
não se viu nada similar desde a Segunda Guerra Mundial. O que está a acontecer
é a mais brutal destruição sistemática do património mundial”. A essas
destruições soma-se o assalto e roubo de peças únicas do Museu Central de
Palmira. O seu director Khaled al Assar, os seus familiares, os técnicos do
Museu foram torturados e executados porque o EI procurava um tesouro que
supunham escondido. Não o encontrando, roubavam o que o exército, quando
abandonou a cidade e evacuou a população, não tinha conseguido pôr a salvo.
A história de Palmira atravessa séculos do neolítico ao Império
Otomano. Capital de uma dissidência do Império Romano, lugar de importância
pela sua localização geográfica para o trânsito comercial, era a última paragem
antes do Mediterrâneo na Rota da Seda. Com a sua história Palmira congregou um
valor monumental raro. O EI, enquanto destruía monumentos saqueava peças
arqueológicas que traficava através da Turquia para os mercados mundiais. “As antiguidades de Palmira
estão à venda em Londres, como outros objectos da Síria e do Iraque" denunciou
no The Independent a arqueóloga Joanne Farchakh. É indignante como esse mercado
floresce no Ocidente sem que ninguém faça nada.
O concerto da Orquestra de Mariynski assinala uma vitória da
civilização contra a barbárie. A abrir o concerto, Putin, por vídeo, fez um
discurso em que lembrou que “celebrar aquele concerto na proximidade de
lugares onde decorrem acções bélicas tem riscos e exige muita coragem pessoal” enaltecendo-o
como “magnífica acção humanitária, uma mensagem de memória, esperança e
agradecimento”(…) agradecimento extensível a todos os que lutam contra o
terrorismo pondo em risco a própria vida (…) uma memória de todas as
vitimas do terrorismo, independentemente do lugar e do momento do crime, sempre
um crime contra a humanidade(…) a esperança no futuro renascimento de Palmira
como património da humanidade, é um sinal da libertação da civilização
contemporânea dessa peste que é o terrorismo internacional”.
Um concerto de propaganda? Um discurso de propaganda? Claro que
Vladimir Putin aproveita para mostrar ao mundo quem no Médio-Oriente entrou na
guerra para lutar de facto contra o terrorismo, obrigando outros a maior
empenho e, se possível, a menor hipocrisia já que foram os maiores
patrocinadores desse mesmo terrorismo, até ficar fora de controle. Agora estão
mais empenhados, mas continuam políticas dúbias como se vê quando se submetem a
chantagens da Turquia e Erdogan. Faz propaganda do que a Rússia conseguiu?
Claro que faz e fá-lo sabendo que, sem os nomear, Obama, Cameron, Hollande estavam
com as orelhas a arder, mesmo que a gigantesca máquina de mentiras ao seu
serviço silencie ou menorize este concerto histórico.
1 comentário:
È sempre um privilégio ler Manuel Augusto Araújo.Para além de ser detentor de uma enorme cultura,consegue transmitir o que pretende de uma forma tão simples ,o que não é comum em muitos intelectuais!Bjo
Enviar um comentário