A
criação da NATO, em 1949, antecedeu em oito anos o Tratado de Roma, que deu
origem à Comunidade Económica Europeia (CEE). E todos os seis Estados fundadores
desta tinham participado na formação da Aliança Atlântica, sob o controlo
militar norte-americano da Europa Ocidental e sobre os escombros de uma vasta
região carente do traiçoeiro e caríssimo Plano Marshall. Nos prosaicos termos
da teoria dos conjuntos, a CEE (hoje União Europeia) integra a NATO desde os
tempos em que nem sequer nascera.
É
inevitável que a chamada «construção europeia» – na sua vertente real, não a
mitológica para efeitos de propaganda – seja inseparável da estratégia e dos
comportamentos da NATO, uma vez que uma e outra cuidam dos mesmos interesses. A
versão oficial assegura que são a democracia e os direitos humanos; os cidadãos
sentem e sabem, por experiência própria, que a «Europa» e a autoproclamada
«aliança defensiva» cuidam sobretudo da impunidade do mercado, do casino da
finança, da austeridade, da desregulação de capital e trabalho, das guerras
expansionistas e de rapina sempre que esses interesses as reclamem.
Não
foi apenas na origem que a união militar antecedeu a união política; a história
das décadas mais recentes demonstra que a NATO chegou sempre antes da «Europa»
quando e onde houve matéria-prima – territórios, países e povos – a capturar.
Nos
Balcãs, na esteira da destruição artificial e sangrenta da Jugoslávia, a
aliança militar apropriou-se – formal ou informalmente – da Croácia, Eslovénia,
Bósnia-Herzegovina, Kosovo e Montenegro; a União Europeia, enquanto tal, chegou
depois e submetendo-se aos esboços traçados pelo aparelho militar
transatlântico, para então cuidar da formatação política nesses territórios,
entre chantagens e promessas miríficas.
Mais
flagrante ainda foi a corrida aos despojos dos antigos Tratado de Varsóvia e
União Soviética. A NATO fez de lebre na anexação dos países desde a RDA,
Roménia e Bulgária aos Estados do Báltico, fazendo a União Europeia de
tartaruga, isto é, impondo a componente política invasiva depois de
estabelecidos os parâmetros militares, os quais, em boa verdade, presidiram à
transição sem rede da economia planificada para a anarquia mercantilista. Ao
conjunto das operações chamaram «democratização».
Ainda
hoje – hoje em realidade temporal e não figura de retórica – os Estados Unidos
acabaram de colocar mais mil soldados com capacidades letais na Polónia,
ameaçando «defensivamente» a Rússia, ignorando olimpicamente os desencontros,
apenas narcísicos, entre o regime pré-fascista de Varsóvia e Donald Tusk, o
agente polaco do liberal-conservadorismo instalado à cabeça do Conselho
Europeu.
«(...) a história das
décadas mais recentes demonstra que a NATO chegou sempre antes da
"Europa" quando e onde houve matéria-prima – territórios, países e
povos – a capturar.»
Não
passam, pois, de mitos engendrados nos centros de propaganda que alimentam a
gesta da chamada «integração europeia» as lendas em torno dos «pais fundadores»
e seus impulsos visionários. Enquanto o banqueiro Jean Monnet criava o seu
Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa, na primeira metade dos anos
cinquenta, depois de ter assessorado o presidente Roosevelt no impulso
armamentista norte-americano, já os Estados Unidos tinham assegurado o controlo
militar e «democrático» da Europa através da NATO, integrando até a ditadura
fascista que vigorava em Portugal; ainda Robert Schuman, o «pai da Europa» a
quem o papa Wojtyla abriu as portas da canonização no ano da queda do Muro de
Berlim, pregava sobre a indispensável aliança política entre a França e a
Alemanha, já os dois países se tinham irmanado dentro da NATO, sob a tutela do
Pentágono; ainda o direitista chanceler alemão Konrad Adenauer procurava salvar
os restos das bases industriais do país do assédio punitivo da França e de Jean
Monnet – depois diluído com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
– e já a Alemanha Ocidental fazia parte da NATO, o que aconteceu antes de ser
reconhecida verdadeiramente como um novo Estado soberano.
Durante
toda a segunda metade do século passado, a partir do Tratado de Roma de 1957, a
Comunidade Económica Europeia sempre foi olhada como um «pilar europeu» da
NATO, submetendo a política de defesa dos Estados membros às normas, práticas e
estratégias da aliança militar transatlântica. A integração política
desenvolveu-se sempre no âmbito de uma confraria militar operada a partir dos
Estados Unidos e envolvendo um núcleo dos países mais poderosos tanto na
«Europa» como na NATO: Alemanha, França, Reino Unido e Itália. O Brexit não
altera os dados da situação porque se processa apenas na União Europeia – o elo
mais fraco destas ligações.
A
transferência de tarefas operacionais da NATO para a CEE/CE/UE, tendência que
se vem reforçando no século em curso, no âmbito da formação de um chamado
«exército europeu», não é redundante do ponto de vista militar porque traduz,
sobretudo, uma partilha de missões e uma repartição de encargos, naturalmente
em prejuízo dos países e povos europeus.
Porque
a questão de fundo, a permanente pressão militar atlantista sobre as decisões
políticas, no âmbito da integração europeia e da vida nos Estados
participantes, sempre foi salvaguardada.
Os
exemplos dessa realidade foram abundantes durante a guerra fria, período em que
a «integração europeia» serviu de pretexto para a definição de baias políticas
que não poderiam ser ultrapassadas pelos Estados membros, mesmo que a vontade
dos povos, expressa em eleições, e até o realismo de alguns políticos o
justificasse. Uma linha absolutamente inultrapassável imposta pela NATO, e
cumprida pelas instituições europeias, era a do acesso de Partidos Comunistas à
área governamental.
Os
casos mais flagrantes foram o de Itália nos anos setenta, culminando com o
assassínio do dirigente democrata Aldo Moro; e os da Grécia – onde o PASOK
sempre rejeitou acordos com os comunistas; e, sobretudo, de Portugal, onde a
adesão à CEE, sem qualquer consulta popular e informação objectiva da população
sobre as consequências, foi uma operação que serviu principalmente para tentar
liquidar, através de imposições externas militares, económicas e políticas, as
vias transformadoras harmonizadas com o espírito da Revolução de 25 de Abril.
«Uma linha
absolutamente inultrapassável imposta pela NATO, e cumprida pelas instituições
europeias, era a do acesso de Partidos Comunistas à área governamental.»
Os
partidos sociais-democratas e socialistas europeus, peças estratégicas da
«integração europeia» sob gestão da NATO, respeitaram as exigências atlantistas
– parte de uma obscura política de bastidores – e sempre que surgiam suspeitas
de desvios o mal era extirpado liminarmente. Assim desapareceu o primeiro
ministro sueco Olof Palme do número dos vivos. Para manter as aparências
«democráticas», as decisões emanadas do submundo político-militar eram
executadas por organismos terroristas clandestinos apensos à própria NATO – a Gladio,
por exemplo – como está cabal e documentalmente comprovado.
Assim
se foi solidificando, dentro da NATO e da União Europeia, a convergência das
políticas militares e económicas dos socialistas/sociais-democratas e das
direitas liberais-conservadoras em formato de partido único, no exterior do
qual não havia prática política com acesso à verdadeira tomada de decisões.
Com
a queda do Muro de Berlim a NATO tomou o freio nos dentes e nem sequer pôs a
hipótese de se extinguir, uma vez que o mesmo acontecera com o Tratado de
Varsóvia, muitas vezes identificado – com todo o desplante – como a razão da
sua existência.
A
confluência dos avanços neoliberais durante os anos oitenta, a vertigem do
progresso tecnológico e a extinção do inimigo ideológico proporcionou a veloz e
frenética anexação dos ex-membros do Tratado de Varsóvia pela NATO, ainda antes
de o serem pela «Europa».
O
Tratado de Maastricht, fruto deste cenário, remeteu, de facto, o Tratado de
Roma para a arqueologia da «integração europeia». Surgiu uma outra «Europa»,
sem se sentir amarrada a quaisquer peias de capitalismo «social» ou «de rosto
humano».
As
instituições europeias e os Estados membros, de Lisboa a Tallinn, abraçaram o
neoliberalismo puro e duro; os socialistas/sociais-democratas, antes de
começarem a emergir excepções, embriagaram-se com a terceira via – o
liberalismo thatcheriano à moda de Blair; tudo isto sempre a reboque da
estratégia da NATO e das suas guerras sem leis, ao serviço da globalização
entendida como regime neoliberal global.
Até
à crise que explodiu há quase dez anos, tão teimosa que parece inconvertível ao
determinismo capitalista da sucessão de ciclos de crescimento e
estagnação/recessão.
Para
a NATO, tal facto não parece ser problema. Os militares, por definição, não têm
que se preocupar com a democracia, os direitos dos cidadãos e até as convulsões
no mundo das economias. Isso, em tese, cabe aos políticos.
O
elo mais fraco do sistema, porém, está agora ainda mais fraco. O normativo
político da NATO já começou a ser desrespeitado aqui e ali; a União Europeia
tornou-se uma caricatura de um gigante mal amanhado e com os pés de barro; e o
capitalismo selvagem é sacudido por contradições que ainda há poucos anos eram
inimagináveis.
Não
é apenas o Brexit e outras insolvências; nem sequer o aparecimento de Trump;
nem a fuga para a frente do que resta da União Europeia, a diferentes
velocidades e para um federalismo sem qualquer tipo de sustentação; nem as
setas envenenadas disparadas entre Washington e Berlim, entre Varsóvia e Bruxelas,
entre Paris e Moscovo, entre uns e outros, entre outros e uns.
Assistimos
apenas a sinais; detectamos sintomas. A instabilidade tomou conta das
estruturas transnacionais neoliberais que se afirmavam sólidas, inamovíveis,
capazes de decretar o fim da História. Há um potencial e um espaço para a
mudança, porém ante uma barreira que procura travar o desmoronamento do sistema
– a NATO. Esse potencial de mudança arranca muito atrás de fenómenos nos quais
o capitalismo, temendo a desagregação, foi delegando atribuições para
sobreviver: o fascismo, o nacionalismo, os estados de excepção.
Geminada
com a NATO desde o nascimento, a União Europeia é sempre uma putativa entidade
paramilitar. Com o extremar das crises, o poder autoritário das armas abafa a
razão das palavras. Cabe aos cidadãos evitar que a guerra seja, mais uma vez, a
«solução».
2 comentários:
Muito bom!Só a luta dos povos poderá impedir a barbárie.Bjo
Cara Olinda (que não conheço) ... mas porque é que a luta dos povos não se pode fazer no seio de uma grande nação europeia dirigida por um só governo? O que impede que a luta pelo atingimento da felicidade não se possa fazer no seio de uma grande nação? Não aconteceu a revolução de Outubro num enorme (embora pouco densamente povoado) país? As graçolas de "copos e mulheres" ao fim de uns anos deixariam de acontecer porquanto se formaria uma identidade europeia ... embora com diferenças regionais ... e essas diferenças de carácter e de cultura nesse grande país assumiriam um carácter de salutar diversidade (como o que atualmente vigora no nosso país entre os "compadres" alentejanos e os "morecões" do norte) ...
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