quinta-feira, março 23, 2017

Na contradição da "intranquila normalidade" (ou da anormal tranquilidade)... citando uma crónica do local

«Valdemar Cruz almoçava em Piccadilly Circus, ao início desta tarde, quando se deu o ataque terrorista nas imediações do Parlamento britânico. Eis o seu relato (no Expresso) do ambiente vivido numa das capitais do mundo e da sua “intranquila normalidade”


em Londres

Passavam poucos minutos das 14h30 e, de repente, toda a zona de Piccadilly Circus, onde almoçava, ficava dominada pelo intenso e continuado barulho de ambulâncias a passarem em grande velocidade
Na rua, no restaurante, não se deteta qualquer alteração de comportamentos. É o contraste absoluto com o drama – virá a saber-se mais tarde – vivido uns metros mais abaixo. Impera uma estranha normalidade. Por vezes, nestas circunstâncias, estar perto é estar muito longe.
Já na rua, largos minutos depois, são duas jovens mulheres brasileiras a dar a primeira nota de alarme. Ao perceberem a proximidade linguística mostram-se perturbadas. Uma delas tem um pequeno filme feito escassos minutos antes nas proximidades dos incidentes, mas sem a mais pálida ideia do que se possa ter acontecido. Sabe apenas ter sido impedida de prosseguir o passeio a pé em direção ao Big Ben.
Passam repórteres fotográficos a correr. Em vão. Todas as passagens estão bloqueadas. Ao tráfego automóvel e de peões. Os edifícios públicos são esvaziados de gente. Tudo em escassos minutos.
Prossigo a caminhada por Trafalgar Square. Junto à National Gallery há um amontoado de gente. Em grande parte são funcionários do museu. Continuam a passar ambulâncias a alta velocidade. Há helicópteros no ar. Numa ponte pedonal, um repórter de imagem de uma televisão tenta focar o longe. Não consegue aproximar-se mais. Lá no fundo vê-se uma ponte com o trânsito bloqueado, veem-se os carros da polícia com as luzes ligadas. Ali ao lado está a London Eye. Fechada. Um pouco à frente aparece o Royal Festival Hall. Fechado. Ainda mais à frente, junto ao rio, na zona renovada até à Tate Gallery, de novo um aglomerado de gente. São os funcionários da Tate, convocados a sair para a rua.
É estranho. Chegam as primeiras mensagens de familiares e conhecidos. Trazem angústia. Falam de mortos e feridos. Falam de um possível ataque terrorista. Fala-se de um tempo feito de suspeitas. Fala-se do medo e da dor.
Ao longo da tarde, o centro de Londres é um espaço bloqueado. Paralisado. E, no entanto, não obstante do alarme das notícias impõe-se uma calma assustadora. As pessoas passam, e nada parece ter acontecido. O tempo passa e, na verdade, quem está na rua não sabe o que está a passar. E esta ignorância não remete apenas para Londres. É uma ignorância do mundo. É uma ignorância sobre o mundo em que vivemos. É uma pergunta ainda sem resposta. O que se passa? Até quando?
Em frente à Tate Modern, um homem toca saxofone, interpreta “Baker Street” de Gerry Rafferty. Cai a tarde. Continuam a passar ambulâncias. A melodia daquele saxofone acaricia a languidez da tarde que se esvai. O tempo passa. As pessoas passam. A cidade esfuma-se no espanto da intranquila normalidade.»


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