E decidira, para mim, que não comentaria o que fosse lendo, por mais que alguns textos me acicatassem. Até porque ”o caderno” não está aberto a comentários… Algumas vezes dificilmente me consegui conter, mas tenho passado adiante, incomodado pelo lido e, talvez mais, por não reagir. Pois se até foi ele que escreveu que eu quero sempre ir até fim das palavras e das explicações…
Mas, agora – hoje –, é irresistível. Embora me queira comedido. Hoje, Saramago perora sobre Álvaro Cunhal. E são os dois, com Lopes Graça, as personalidades que conheci pessoalmente e de que guardei a funda impressão de ter convivido com gente que ficará na História (veja-se o tamanho do agá)[1]. Não resisto a um breve comentário.
Sou dos portugueses que se acolhem à sombra da “raquítica árvore (…) a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito”, e continuarei a sê-lo, recusando iconoclasticamente a saramaga imagem, irónica, menos(ou des)prezadora, paternalísta e, claro, definitiva. Não vejo a árvore raquítica, nem me sinto a ingerir palavrosos farnéis. Como muitos milhares de portugueses de espírito decerto mal alimentado, e por isso pobres, vejo a árvore frondosa, com sombra para muitos e muitos mais, e alimento-me com as palavras de uma base teórica, ideológica – estatutária – de uns autores chamados Marx (cada vez mais actual, não é verdade?) e Lenine.
Além de entorses histórico-cronológicos, explicáveis por traição da memória e não inocente efabulação, Saramago escreve não ter dúvidas “que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal ainda viveu”, e quero ripostar que não só duvido como me atrevo a dizer que sei que não foram de amargura essas horas. Que foram de luta!
O Partido não foi, nunca foi, o Partido de um secretário-geral e de certos militantes que se vangloriam de umas vezes não terem estado “de acordo com o secretário-geral que ele era”. O Partido, Portugal, o Mundo, a Humanidade, não são (só!) personalidades. Como escreveu Álvaro Cunhal[2] citando Lenine “há um todo homogéneo e inseparável “ – Partido, classe, massas – que não se avalia no curto período em que algum de nós é vivo e insubstituível participante (como cada um é). Esse todo, a soma, é muito mais e outra coisa que a adição de parcelas, por mais influente e decisiva que alguma destas seja ou tenha sido.
Mas o culto da(s) personalidade(s) é um “fenómeno negativo que comporta inevitavelmente pesadas consequências”[3]. Obnubila, fazendo ver tudo como eu (ou nós, os da minha condição) e… os “outros”, sem dimensão de tempo e de espaço que não seja a minha (ou nossa, os da minha igualha). É uma pena… além dos “outros”, dos menosprezíveis, há tanto de si próprio, e tão valioso, que o cultor da sua personalidade deixa de ver.
[1] - “Ao fazer este balanço – e este livro é, bem ou mal, um balanço de uma vida, mereça ou não ser contada – sei que raro é o que, sendo efémero, transcende a efemeridade. De tanta gente que conheci, com quem tive um relacionamento de alguma proximidade, ao encontrar-me com três homens senti essa transcendência. E a minha vida foi muito mais rica por os ter conhecido. Álvaro Cunhal. Fernando Lopes Graça, José Saramago”. (50 anos de Economia e Militância, edições avante!, 2008, pg.316)
[2] - O Partido com paredes de vidro, Álvaro Cunhal, edições avante!, 1985
[3] - idem