segunda-feira, maio 23, 2011

Histórias de exemplo - 1

Algumas histórias/estórias acompanham-nos a vida. Pela importância que tiveram na nossa vida, pelo modo como as vivemos. Depois, contamo-las e recontamo-las. Às vezes, acrescentando uns pontos aos contos e aos contares. Nunca foram exactamente assim. Mas servem de exemplo. Como esta.

O quadro superior da OIT mostrou desejo de sair dos gabinetes ministeriais, de “sentir” como estavam “as coisas no terreno”.
“Coisas” como a reforma agrária, tão falada e tão denegrida pela comunicação social, que reportava um Alentejo “a ferro e fogo”, que até teria sido perigoso atravessar no "verão quente de 1975"… se é que ainda não o eraum ano passado, sem que tivessem parado as ocupação e "a terra a quem a trabalha".
Contei-lhe a minha “aventura”, nesse tal verão quente de ano anterior, em que atravessei o Alentejo em várias direcções e como, numa dessas travessias, em Santiago de Cacém, enquanto bebia uma imperial numa esplanada, tive o privilégio de ouvir uma missa atirada aos ares e ventos por altifalantes na torre sineira, e em que o sermão era uma peça de oratória de primário e feroz anti-comunismo que merecia ter sido gravada.
O meu testemunho era evidentemente suspeito… e lá partimos para Évora.
Pelo caminho e nas redondezas, visitámos cooperativas e unidades de produção, vimos, conversámos e, num final de tarde bem alentejana, sentámo-nos à volta de uma mesa, numa reunião entretanto combinada com responsáveis vários de várias entidades ligadas à tal vilipendiada reforma agrária.
Depois de algumas descosidas exposições iniciais, a conversa começou a ter sentido e rumo, e foram-se levantando dúvidas e colocando questões, e, de passagem, fixámo-nos num (aparente) pormenor.
Um bancário referiu uma livrança que titulava um crédito que o latifundiário pedira para a sementeira na herdade que, entretanto, fora ocupada pelos trabalhadores rurais. Em nome destes, um deles falou: “… atão qual é o problema?!, o gajo semeou com esse dinheiro, nós vamos colher… nós pagamos essa coisa da livrança com o fruto da sementêra…”, ripostou o bancário: “… mas a livrança está assinada pelo latifundário, ele é que é o responsável…”, e logo veio a réplica pronta: “… e óspois, ele não se serviu das massas para comprar um carro, ou jóias para uma amante… foi para fazer a sementêra… nós cuidámos dela, vamos colher e ficar com o que ela renda… pagamos a livrança ou lá o que é, tá visto…”.
E passou-se ao ponto seguinte da ordem de trabalho que se fora organizando.
No regresso a Lisboa, Michel Wallin (alto quadro da OIT, de que guardo saudade e a quem presto homenagem) dizia-me que não se lembrava de ter recebido uma tão esclarecedora lição de economia.

O episódio terá contribuído para a criação, pela OIT, de uma missão multinacional para elaboração de um plano de médio prazo (1977-80), com o nome “emprego e necessidades essenciais em Portugal”, no contexto de um Programa Mundial do Emprego e de uma estratégia também chamada de “emprego e necessidades essenciais”, de que Portugal poderia (!) ter sido pioneiro.
Tudo se perdeu? De modo nenhum… já lá dizia Lavoisier…

5 comentários:

samuel disse...

Tudo teria sido tão diferente se muitos mais portugueses tivessem visto, ouvido e sentido a Reforma Agrária com os seus próprios olhos, ouvidos... e coração, em vez das versões dos criminosos Soares e Barreto.

Abraço.

Justine disse...

A isso chama-se honradez - conceito esquecido por tanta gente...

Ana Martins disse...

Temos um povo mesmo bonito, só é pena deixar-se maltratar tanto tantas vezes!

Graciete Rietsch disse...

Magnífica lição para os que dizem que renegociar a dívida é não a pagar.
O alentejano nem por sombras pôs a hipótese de não pagar a livrança(ou lá o que é).Pagá-la-ia com o seu trabalho.E a enorme dívida deste País terá que ser paga à medida do seu desnvolvimento assente, em grande parte, no aumento de produção.

Um beijo.

Antuã disse...

Assim com honra era a força dos trabalhadores alentejanos.