Um roubo homologado
O título que encima estas duas colunas pode fazer supor que se refere ao caso BES, essa escandaleira que provavelmente se vai manter por algum tempo nos títulos dos «media» e decerto por muito mais tempo na memória da arraia mais ou menos miúda que lhe vai sentir os efeitos. Mas não, o título refere-se a um outro roubo, menor na dimensão financeira mas não na desvergonha, embuste que parece estar a ficar desvanecido na memória das gentes em geral, como se fosse aceitável esquecer um só dos violentos assaltos que os poderosos ou os protegidos cometem contra os que lhes caem nas mãos. Lembrou-o Bagão Felix na sua mais recente intervenção semanal na SIC Notícias, e aproveito a oportunidade para confessar que tenho andado a reconhecer em Bagão Felix, antigo ministro dito independente num governo de direita, virtudes que ultrapassam a da sua notória condição de sócio e militante do Benfica. Ora, Bagão veio acrescentar-se à lista de figuras que na televisão tem vindo a referir-se com espanto, indignação e óbvio desacordo, à decisão do TC, tomada aliás pela mínima diferença de um voto, que aceitou e de algum modo passou a patrocinar o esbulho descarado e grave cometido contra trabalhadores da Carris e do Metro de Lisboa, em tempo aliciados pelas respectivas administrações para que aceitassem reformar-se antecipadamente com a formal contrapartida de lhes ser pago um complemento de pensão de reforma que os compensasse da redução de valor que a antecipação iria gerar. Aconteceu que, com a protectora conivência do governo concretizada no OE para o ano em curso, o complemento então proposto aos trabalhadores deixou de ser pago, em flagrante violação do contratado e deixando muitos dos esbulhados em situação de penúria, resultado a que sete dos juízes do TC não parecem ter sido sensíveis. Foi, de facto, como que um roubo superiormente homologado, o que surpreendeu diversos juristas que entretanto se pronunciaram na televisão sobre o assunto.
Os uns e os outros
Acresce que a proposta formulada aos trabalhadores então ainda ao serviço activo continha uma alternativa possível: o recebimento imediato e por uma só vez de um valor indemnizatório que em muitos casos atingia uns muitos milhares de euros. Confiada em que as administrações eram constituídas por pessoas de bem, a maioria dos trabalhadores contactados optou pelo recebimento mensal do complemento proposto e agora sonegado, desse modo contribuindo involuntariamente para ficar em desigualdade com os colegas que receberam a indemnização proposta, uma vez que os valores então pagos já não podem ser roubados. Não sei, nem tenho de saber, se este aspecto da questão foi oportunamente apresentado ao TC, mas sei, como aliás me cumpre, que na televisão têm surgido depoimentos de cidadãos qualificados a denunciarem o logro, que consideram claríssimo. Pela mesmíssima televisão sei também, como toda a gente, que neste nosso pequeno país há mais «Ricardos Salgados» do que geralmente se supõe, variando embora a forma e a dimensão dos feitos, a circunstância de serem eles cometidos por conta própria ou por conta alheia. Não há que estranhar, ainda que a cada passo sejamos tentados a surpreender-nos, incrédulos perante o que afinal se vai tornando evidente: que este é um modelo de sociedade em que a uns, muitos, cabe «naturalmente» a maior ou menor miséria enquanto a outros, poucos, cabem as fortunas e o direito ao permanente assalto aos bens alheios. Também na televisão ou fora dela se ouve falar do chamado «Estado de Direito» e por isso nos inclinamos a crer que se trata de mais que de uma bonita fórmula verbal, de uma espécie de boato posto a correr para que não nos sintamos muito desamparados. Até que, um dia, as brutalidades chegam e entram nas nossas vidas, impunes, sem bater à porta. Por agora, talvez durante muito mais tempo, muitos de nós só ouvem falar delas. Trabalhadores da Carris e do Metro de Lisboa, culpados do pecado de terem confiado, já sabem como é. Sem que ninguém surja a querer valer-lhes pela anulação do crime contra eles cometido.
Correia da Fonseca
3 comentários:
VIVEMOS JÁ NÃO NUM ESTADO DE DIREITO, MAS SIM, NUM ESTADO DE DIREITOS DE ALGUNS CONTRA TODOS.
CADA VEZ MAIS, O QUE É LEGAL, PARA ESTA CÁFILA, É ILEGÍTIMO E NÃO CABE NA CONSCIÊNCIA DE NINGUÉM BEM FORMADO.
ABRAÇO,
mário
Já não há prisões para tantos ladrões.
Tambêm li.Correia da Fonseca sempre alertando e denunciando.
Um beijo
Enviar um comentário