GERINGONÇADA
Alguém de inventiva fértil e
verbo fácil foi buscar, ao seu prolixo bric-à-brac, o vocábulo geringonça.
Dele se serviu, achando-se graça, para apostrofar a solução encontrada
no contexto parlamentar e nas condições criadas pela intervenção de Jerónimo de
Sousa, no caudal das primeiras reacções aos resultados eleitorais das
legislativas de Outubro de 2015.
Esse alguém (que os negócios
já lá têm… como sempre tiveram!), que junta à criatividade léxica intenções das
que forram o inferno, quis ironizar – ou melhor: ridicularizar – a fórmula
encontrada no naipe, também simplificado ou simplista, de extrema-esquerda,
esquerda, centro esquerda, centro direita, direita com uma pequena mancha verde
no lado esquerdo e uma outra ainda mais pequena de cor incerta colocada entre
os centros[1]
em que se encontrava a Assembleia que é da República e eleita tinha sido. Com
rangeres de dentes e manigâncias infrutíferas de escavacado Presidente da República,
então de saída de palco pela porta da direita mais baixa.
Usando esta etiquetagem (com
pinças, isto é, com aspas), “geringonça” teria sido uma imagem da fórmula
negociada, entre-partes, da maioria de deputados que estava do lado esquerdo da
direita empoleirada. Seria – e foi – a maneira provisória e desequilibrada de
apoiar um executivo (o governo e sua “governança”, que é o que conta para esse
alguém e para os de sua estirpe), previsivelmente condenada a depender de uma
caranquejola[2] ou
engenhoca de mau funcionamento e triste fim.
O facto é que, arrostando
ironias e ridicularizações, predições e maldições, contra ventos e marés,
incêndios e tragédias, incomodando seriamente mesmo quem hipocritamente “faz que sim mas que também…”, a “coisa”
tem andado. Bem? Depende de quem (e do lado que) observa e avalia. O facto é
que, com o tempo foi virando em aceitável – e, depois, até em simpático – o que
tinha, no criador, intenção pejorativa.
Ao que é que isto vem? Pois
vem ao facto de, por ter resistido, a tal de geringonça (dispensa as aspas…), começou
a ser, também, um espectro que assusta quem, no atapetado e acolchoado dos
gabinetes, quer aproveitar os desmandos do mundo, passou a alvo a abater pelo grupo
dos padrinhos do anátema e seus divulgadores. Não pelo que se diz (errada mas
não ingenuamente) ser – uma “aliança das esquerdas” – mas por quem a compõe,
por incluir, entre as peças desconjuntadas, representantes de corrente de
pensamento e acção que vem, desde 1848 (e antes de tal ter sido manifestado nessa data…), a ser
espectro assustador.
E, além do apodo como
intuitos escarnecedores, é notório, embora tão invisível quanto possível, o
assédio e enleio aos outros parceiros ou parceiras para os separar de tal
companhia e mai-las suas nefastas influências. Particularmente nas acções
(orçamentos e tal) que ela possa condicionar e nas ideias que possa inocular
nos ditos parceiros e (bem pior ainda…) nas massas a que possa levar conhecimento, ideologia, consciência. De
classe.
Porque é ai que está a
fronteira a não pisar. A que separa as classes, o salário do lucro, a
moeda-meio de troca material da fidúcia financeira que deixou de merecer
qualquer confiança porque imaterial e viajante por areias movediças e de
off-shores.
Começou logo por se apregoar
surpresa e novidade. Como se nunca os comunistas (e aparentados) e os
sociais-democratas que se crêem e querem de esquerda (alguns a prazo e períodos
curtos) tivessem feito acordos ou participado lado-a-lado em coisas parecidas
com a apelidada geringonça, como “inimigos íntimos” que seriam, ou assim os disseram
sempre inventivos. O que nem é preciso ir para lá do rectângulo ou andar muito
atrás no tempo para desmentir. E se ilustra com as “uniões de esquerda” em
França, ou os casos caseiros do Serviço Nacional de Saúde (aprovado pelos votos
PS-PCP-UDP em 1979 contra o lado direito do hemiciclo), ou os anos lisboetas de
acordo a dois a que o PCP trouxe o PS.
É certo que as memórias são
para não se perder, sobretudo pelo PCP (ou PCF) sempre em risco de descartado
depois de servir de trampolim para o poleiro onde os sociais-democratas exercem
a sua vocação de se afirmarem de esquerda e fazerem política de (ou com a)
direita. Pelo não pode haver distracções com tais parceiros e há que manter a
memória sempre fresca. Exigindo respeito pelas identidades, e recusando o papel
de tapetes em que se limpem os chanatos, única forma de continuarem de vermelho
vivo as cores de todos os adereços.
E, de novo, vem isto a
propósito de quê? Pois vem a propósito das recentes autárquicas. Usadas pela
“informação ao serviço” para, aproveitando os resultados, se procurar fazer
leituras que contribuam para ou se degeringonce ou recriar geringonças a dois,
ou a três ou a quantos (e quais) os precisos… mas dispensando sempre o “mau da
fita”.
Muito se tem tentado, através
de analogias enviesadas, tomar o que foi usado para a Assembleia da República –
e que só para esta poderia servir – como modelo ou bitola e, assim, mostrar que
não funciona, ou que funcionaria mas sem a peça perturbadora sob a forma de
CDU/PCP-PEV.
No Poder Local, nas
autarquias, o executivo é a câmara, com um presidente e vereadores (ou a junta),
e que fique claro que, se houvesse alguma possibilidade de analogia com o Poder
Central, seria com o governo, com o 1º ministro e os seus ministros, e não com
a AR. Ora no governo não entrou a geringonça, porque o PCP não quis – nem quer
– vir a entrar. Embora haja quem não pense noutra coisa…
Se alguma outra analogia se
pretendesse fazer, e que tivesse um mínimo de verosimilhança, seria entre a AR[3]
e as assembleias deliberativas. Mas teria de se forçar muito e, para cada caso,
isto é, para cada município, haveria que encontrar a fórmula geringonçada
adequada.
É evidente, e seria
estultícia escondê-lo, que esta é uma perspectiva. É a visão de quem tem da
História a leitura da luta de classes. Visão que outros anatematizam (e contra a qual atiçam raios e coriscos), como é de sua
classe, peremptórios na negação de classes e de luta entre elas, mas que praticam esta continuamente e, tantas vezes, com eficácia e desmesurada violência.
Pelo nosso lado, confessa-se
alguma tristeza momentânea pelos resultados eleitorais das autárquicas. Não poderia
ficar-se indiferente à perda de maiorias CDU em concelhos como Almada, Beja,
Peniche – nossos verdadeiros símbolos – e mais quedas em tantos outros lugares,
mas o que mais deve fazer pensar – e alertar! – são os porquês, as causas e o aproveitamento
que está a ser feito para renovadas (e ridículas) certidões de óbito passadas
ao PCP, para a promoção de acordos (diria conluios) a torto e a direito, ou seja, entre sociais-democracias e esquerdas-tortas
e/ou as direitas de diferentes calibres, numa estratégia de classe de quem nega
a luta de classes e, assim, procura atirar-nos fora de carroças geringonçadas e
diminuir a nossa (da outra classe e suas organizações) influência na correlação
de forças.
Cá estaremos!
... e há mais!
[1] - Correspondendo
essa etiquetagem a disposição dos partidos e grupos no espaço do anfiteatro
parlamentar, usaria outra (minha!) semântica: esquerdalhos e esquerdinhas,
esquerda consequente e com componente ambiental, social-democracia com
reminiscências esquerdizantes, social-democracia anti-socialismos (salvo os
democraticamente burgueses), democratas-cristãos com a alcunha de sociais democratas
que hifenizam com obsoleto labéu popular-democrata, cristãos-democratas puros e,
por último ou de resto, os precários ou indefinidos ou em trânsito.
[2] -
Lembra-se o poema de Mário Sá Carneiro
[3] - para
que a fórmula foi concebida e teve resultados positivos pelo que travou e pelo que permitiu
recuperar – objectivamente, embora com “contabilidades”várias e outros contares
– na situação dos trabalhadores e de todo o povo português.
1 comentário:
Uma reflexão lúcida e inteligente,sobre a qual estou completamente de acordo!Li-a duas vezes,medindo cada frase.Bjo
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