Ana Margarida de Carvalho
reinventa o Alentejo da raia,
nos anos 30 do século passado,
com ecos da Guerra Civil Espanhola
O terceiro romance de Ana Margarida de Carvalho confirma a altíssima qualidade da sua escrita, uma das mais exigentes e poderosas da literatura portuguesa contemporâneaTEXTO JOSÉ MÁRIO SILVANo universo da língua portuguesa, contam-se pelos dedos os autores que revelam coragem e audácia para testar verdadeiramente os limites da forma romanesca. Entre eles, destaca-se Ana Margarida de Carvalho, tanto pela hábil experimentação de novos processos narrativos como pelo luxo quase barroco da sua prosa. Em 2016, com “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato” (Teorema), ofereceu-nos um verdadeiro prodígio literário, no qual um conjunto de personagens muito díspares — isoladas numa praia brasileira, entre uma falésia intransponível e o oceano onde se dera o naufrágio do navio negreiro em que viajavam — se transformam numa improvável “máquina comunitária”, capaz de sobreviver a tudo, muito à conta da capacidade de fixar e repetir as suas histórias. Agora, em “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”, a autora volta a propor-nos um tour de force arriscadíssimo, em forma de saga alentejana comprimida num só dia, entre “dois entardeceres”, ao longo de seis capítulos bastante extensos, cada um atravessado por uma única frase, labiríntica e cinzelada com minúcias de ourives. É, diga-se desde já, uma experiência linguística que exige muito do leitor — afastando-o à bruta da matéria anódina e pasteurizada da ficção comercial que pulula nas livrarias, produzida em massa e para as massas, já devidamente mastigadinha e pronta a deglutir — mas, uma vez ultrapassada a linha de rebentação da estranheza, vencida a possível resistência a uma voz que parece caótica e divagante, deparamos com os júbilos e deleites próprios, há séculos, da grande arte.
O GESTO QUE FAZEMOSPARA PROTEGER A CABEÇAAna Margarida de CarvalhoRelógio D’Água, 2019, 259 págs., €18Romance
Em vez da praia emparedada e suspensa no tempo, esse locus horrendus de “Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”, encontramos desta vez uma geografia mais difusa. Durante os anos da Guerra Civil Espanhola, de que vamos tendo ecos nas histórias de fugitivos republicanos, ora salvos e escondidos, ora entregues às autoridades franquistas, o território que emerge nas páginas deste romance é o da raia alentejana. Não a raia alentejana concreta, mas uma versão mitificada dessa paisagem agreste, submetida à inclemência tanto do clima como dos tempos históricos. Estamos então no final da década de 30 do século passado, sob uma atmosfera de miséria e abandono. A aldeia que primeiro se perfila no horizonte é Nadepiori, “lugarejo mal atamancado”, que quase não se tem de pé, como se lhe faltassem peças, erguido numa encruzilhada onde confluem quatro ventos “em fúria”, sopros desencontrados que enlouquecem as mulheres (com os cabelos sempre em desalinho; forçadas a guardar chumbos nas bainhas das saias, para que não se lhe descubram as pernas), além de sabotarem a comunicação entre os crentes e os poderes mais altos da fé (a ventania “não deixa que as nossas preces se elevem, elas ficam emaranhadas umas nas outras, não ganham altura”). Perto, mas como imagem oposta, reflexão invertida num espelho, fica o aglomerado de casas a que chamam “quilombo”, erguendo-se numa ilha entre pântanos, cercada pelos braços de um rio que é já só lodo e lama. Em vez da secura e miséria honesta de Nadepiori, o que há ali, além de miasmas húmidos e todo o tipo de bicharada peçonhenta, é a prosperidade ilícita de um bandido a quem chamam “tenente” — temido, mais do que respeitado, por uma horda de “bandoleiros, contrabandistas, malteses, vadios”, e todo o tipo de “gatunagem”.É uma experiência linguística que exige muito do leitor, afastando-o da matéria anódina da ficção comercial produzida em massa e para as massasA estas povoações regressam dois homens que são, também eles, como que o avesso um do outro, embora unidos momentaneamente por uma épica luta contra uma matilha de cães selvagens. Caminhando para a aldeia dos vendavais inclementes vai Simão Neto, canhoto de “cotovelos em aspas”, a empurrar uma carroça carregada de azeitona, homem sem muito que lhe dê sentido à vida, a não ser uma fêmea de falcão a que chama Maria Angelina. Ao quilombo volta Constantino, aceso pela ideia de vingança, depois de vários anos lá longe, no Algarve, onde experimentou a selvajaria sangrenta do “arraial” da pesca ao atum, com as suas redes labirínticas que conduzem os peixes mansos ao sacrifício, ao massacre, numa convulsão de violência extrema que deixa as águas vermelhas. Deste homem calejado se dirá que é mais dado a exclamações do que a interrogações; sendo o contrário válido para Simão. Entre os espantos de um e as dúvidas de outro, desenovelam-se em paralelo muitas outras histórias, como que movidas por forças ocultas, vindas sabe-se lá de onde, conspirando sempre para que, no fim da muita agitação, tudo fique na mesma.Em Nadepiori, as mulheres (talvez “as mais feias de todo o Alentejo”, com os seus “jeitos de andarem torcidas olhando o chão e espreitando só com um olho para cima”) juntam-se dentro de um antigo reservatório de água rachado, onde as suas falas se misturam e entretecem, formando um coro desconforme. No quilombo, há personagens maiores do que a vida, dir-se-ia saídas de um romance de Gabriel García Márquez (a “tenenta”, Séfora, Maria Albinha, os irmãos gémeos Camilo e Constantino), animadas por segredos, ódios e questiúnculas que atravessam gerações. E há pássaros, muitos pássaros em busca do “ilusório conforto do invólucro”, da forma pura do ovo. A forma pura que talvez só seja compreendida por quem está acima de tudo, isto é, acima tanto do que se conta como do que se oculta, esse “narrador observador” cujo pseudónimo é “Deus” (diz o próprio), e que não se coíbe de interferir no destino de quem se arrasta sobre aquela terra inclemente. Imitando a vida, mas nunca escondendo que se trata de uma imitação, este é um livro que se assume como gesto de errância, avançando “sem pausas, sempre a caminhar, sempre em andamento, sem descanso, sem repouso, nem alívio”.Dirigindo-se diretamente a essa instância incerta que é o criador último do real (ou seja, do texto), Simão convoca uma imagem muitas vezes repetida nestas páginas: a do carreiro de formigas que parecem um único animal com milhentas partes, capaz de dar a volta ao mundo. Da mesma natureza, acaba por intuir ele, é o próprio romance em que a sua caminhada, as suas dores e perdas, as suas escassas alegrias, se inscrevem. E resume, certeiro: “Esta história, este livro, estas linhas” são “carreiros de formigas pretas, com intermitências, mas sempre seguindo o seu curso, o fim da última linha pegando no princípio da seguinte e assim por diante, o bicho em peças desmontadas, carreiro infinito que pode não parar nunca, porque é o mesmo bicho comprido que vem em peças separadas, basta a vontade dos teus dedos, os limites da tua paciência”. Bendita vontade, bendita paciência.
1 comentário:
No próximo dia 27, Ana Margarida de Carvalho vem a Setúbal para fazer a apresentação do livro.Vou lá estar e comprá-lo,claro.Bjo
Enviar um comentário