sábado, março 21, 2020

Na sagração da Primavera

Há um quarto de século fomos todos (exploradores e explorados, algozes e vítimas, intervenientes e espectadores desatentos) sujeitos a uma sacralização: a do limite dos 3% para os défices orçamentais. Quem não o tinha deveria tender para ele, quem já o observava merecia o prémio de entrar para a União Económica e Monetária… desde que fosse consistente nos 3%. Portugal estava entre estes últimos (com o sacrifício bem custoso dos do costume, dos trabalhadores).
Mudaram os tempos (poucos) mas não teriam mudado as vontades dos que predominam na correlação de forças. Estava escrito, e o que está escrito é para se cumprir. Embora dependa de escrito onde.

E Portugal, sempre na “linha da frente” dos obedientes que não dos disciplinados, encheu-se de brio: 3% é muito, somos capazes dos 0%! Mesmo que isso pudesse implicar a entrega de empresas fulcrais e de sectores essenciais a grupos privados transnacionais, mesmo que se tivessem de sacrificar, primeiro, adiar depois, direitos dos do costume, sempre mercadorizando o que não pode ser mercadoria e mais precarizando o que deveria ser estável. Artificializando o progresso social.


O sagrado mantinha-se sagrado. E fora de riscos de heresia. Pois se se almejava mais que o tal 0%, se se afirmava pretender o que seria mais que equilíbrio.
De repente, por esta data da sagração da Prima vera, a surpresa: face à gravidade da situação económica-financeira (ou financeira a arrastar a económica), a Comissão Europeia anuncia a heresia: os 3% deixam de ser sagrados.
Depois, será a re-escalada da dívida. Quando ainda não estão pagas – longe disso – as dívidas e custas resultantes da sacralização dos 3%.

O capitalismo tem manhas que agridem o humano e a sua inteligência. Tem que se lhe retirar as más caras e travar a vocação suicida, de que não se esquivam por saberem que a longo prazo estão todos (eles!) mortos e quem vier que feche a porta ou faça os enterros, se houver quem.


1 comentário:

Olinda disse...

Uma heresia que os fiéis "du sacré" nos vão fazer pagar caro.Um texto de alerta inteligente e bem conseguido.Bjo.