Pam! Pam!
As portas das carrinhas batiam lá em baixo, na calçada da Sé.
As duas pancadas ecoavam dentro de cada um de nós.
Em cada uma das celas (“curros”) do Aljube, crescia a expectativa angustiada.
Esperávamos eternidades de segundos, até que um dos postigos se abrisse e o guarda de serviço ao andar gritasse, para um de nós,
“prepare-se para ir à polícia”.
Era o santo e a senha, a palavra-chave de todos conhecida.
Aquele que tivesse de se preparar para
“… ir à polícia” estava preparado.
Sabia ele, e sabíamos todos, o que significava aquele ruído surdo de portas de carrinhas a bater, lá em baixo, na calçada da Sé, aquela frase fria, aparentemente inócua, que escolheria uma cela, um postigo, um de nós.
Vinham buscar um de nós para ir para o interrogatório, para a tortura, para os dias e noites sem dormir, para o percurso por uma Lisboa cheia de gente apressada e indiferente, para um regresso sabia-se lá quando, sabia-se lá como, e até se regresso haveria…
O detido estava preparado.
E que havia para preparar?
Naquele espaço de um metro e dez por um metro e setenta não havia nada que preparar. A não ser dentro de cada um, naquela luta em que só perdia quem se sentisse sozinho, quem à luta se entregasse como se fosse apenas o preso, aquele preso há semanas ou meses isolado para assim ser preparado para
… "para ir à polícia”. Para os interrogatórios, para a tortura, para os dias e as noites sem dormir.
Pam! Pam!
Quando as portas das carrinhas batiam de novo, já com um de nós lá dentro a caminho da António Maria Cardoso, não era alívio o que sentiam os que tinham ficado.
Recomeçava a tortura da espera. Surda, mordida, preenchida de penumbra, pó e palha.
Da espera do próximo Pam! Pam!. Talvez ainda hoje, talvez amanhã…
E, então… Então será – talvez… – a mim que virão buscar.
Este postigo por onde passam frouxos raios de luz, abrir-se-á e ser-me-á dito, num meio berro (que ouvirei como grito meu dentro de mim)
“Prepare-se para ir à polícia!”.
Estou preparado! Temos de estar sempre preparados! (foi assim, comigo, em 1963; foi assim, comigo, em Abril de 1974, até chegar o dia 25; ...)
04.04.2006
desenho de Roberto Chichorro