A vaga trumpiana (até o nome dá para mote e respectivas glosas, a juntar
à caricatura que o personagem transporta e aos acólitos de que se rodeia) tem os seus lados
positivos. É preciso é vasculhar muito para os encontrar.
Um deles será o ter estimulado o debate sobre alguns temas, Por exemplo,
e é dos mais significativos, a acesa polémica entre proteccionismo e livre
comércio, abandonado o “estado de graça” (e de desgraça…) que o liberalismo tem
– teoricamente – desfrutado há 4 décadas no pensamento da “economia política do
capitalismo”, com infiltrações em pensadores (ou pensativos) que se colocam à
esquerda ou – mais ainda – se buscam e/ou arrogam marxistas. (O que é de louvar…
e a mim me louvo).
Um muito lido e citado (ele há modas…) Jacques Sapir descobriu, ou tinha
em ficheiro, um texto de Keynes, de 1932 e vá de publicar, e ver divulgado, Trump, Keynes e o proteccionismo – Le proteccionisme,
notre avenir. Actualité du texte de J-M.Keynes
«National Self –Suffiency» (1933). No contexto de "trumpofobia", o texto tem andado entre-mails e servido de quase antídoto para a insuportabilidade da pandemia. Daí que, para este blog, se tenha decidido reagir em contra-texto:
Breve comentário a
Trump, Keynes et le protectionnisme
Le protectionnisme, notre avenir.
Actualité du texte de J-M.Keynes « National Self-Sufficiency »
(1933).
O artigo de Sapir divide-se em
·
A importância do contexto
·
O argumentário de Keynes
·
Como considerar hoje o argumentário de Keynes
·
A actualidade de Keynes hoje
O texto, apesar da importância que
aparenta dar ao contexto, refere com maior atenção o contexto de 1932/33 e para
“justificar” o que chama a “rotura
definitiva (de Keynes) com o modo do
pensamento económico então dominante” em cuja linha estaria este artigo de
Keynes sobre a “autosuficiência nacional” e menos o contexto actual.
E todo o debate (ou argumentário)
se encerra na alternativa liberalismo-proteccionismo, numa leitura e
análise fechadas em metodologia e ideologia maniqueísta, de onde a dialéctica e
a crítica da economia política estão
totalmente ausente, como se não existissem. Assim será feita a abordagem do
texto de Keynes, toda ela parecendo orientada para encontrar e comprovar a
proximidade de posições de Keynes em 1932/3 com as que seriam as que se referem
de passagem como sendo de Villepin, Le Pen, Mélenchon, Trump numa amálgama de
“ideologias” dentro da ideologia única, exclusiva.
Seria redutoramente, a partir desta
ideologia única, que a realidade impunha o proteccionismo como forma de
ultrapassar o liberalismo e os seus malefícios. Keynes viria ajudar a esta interpretação
da realidade de hoje com a sua condenação dos “capitalistas passivos”, que hoje
têm uma posição relativa muito mais determinante, enquanto especuladores num
contexto (de sistema e correlação de forças), dada a financeirização, a
desmaterialização da moeda, o capital fictício e creditício. Será este
vocabulário um “vocabulário marxista”,
a que Sapir reduz as referências ao marxismo esmagado pelos “avanços recentes da psicologia
experimental”.
A expressão deste liberalismo dos
nossos dias passou pela guerra de 1939-45, pelo período de ascensão (e queda,
por fim) do “socialismo real”, pela reacção que tomou o nome de “guerra fria”,
pela fase transitória de “coexistência pacífica” que acobertou a invasão
ideológica (via liberalismo a partir dos anos 1979/80) de um lado, e a abertura
mimética, demissão ideológica e a queda do outro.
Por tal ser referido, anote-se a
expressão super-estrutural da internacionalização da actividade económica com
os factos significativos da exclusão da institucionalização do comércio ao
nível das “nações unidas”, limitada a
acordos gerais e pontuais (GATT e “rondas”) até à queda dos países socialistas
e a criação da OMC, de onde o liberalismo estreme sofre o constrangimento
expresso na dúvida se foi a OMC que entrou na China ou a China que entrou na
OMC. Uma China que marca os nossos dias de história, os nossos dias em que
somos história…
Pode ler-se, no(s) artigo(s), que há - em
2017 como em 1933 - insuportabilidade social, acumulação de
riqueza… mas tal verificação é escrita no quadro de uma “contradição principal” que seria a da “dimensão apátrida dos capitalistas”, e em que de novo se refere o
termo insuportabilidade para caracterizar a “alienação
própria do salariato”, porque e quando “assalariados
e capitalistas se movem em espaços políticos diferentes”. Situação sugerida
como anormal – e causada pelo liberalismo! –
quando ela decorre da real contradição
principal enquanto relação social prevalecente for a de exploração do ser
humano por seres humanos, dada a relação
social ser a mercadorização da força de trabalho (em trabalho produtivo e
trabalho colectivo), a que Marx chama capital.
Keynes veria, no que se apelida eufemisticamente “conflito insolúvel de preferências”, um risco de guerra, e teria razão porque “a circulação liberalizada do capital priva
as nações da liberdade das suas escolhas sociais” mas acrescenta-se que o “conflito”
viria do “liberalismo condenar a prazo a
existência da propriedade privada”. Ora é esta, enquanto base da divisão
por classes (a que é proprietária dos meios de produção e a que é proprietária
da força de trabalho), que define a relação social capital…
Adiante… A exegese destes textos
(de Keynes e de Sapir) é aliciante mas não é o que importa, para além da
afirmação de que são textos ausentes de qualquer fundamento ideológico que não
o da relação social que é o capital. E podem tornar-se perigosos – ideologicamente
–, por enganadores, ao atacarem o liberalismo por este “tudo reduzir ao estatuto de mercadoria” e por ele poder conduzir “a não se aceitar como valor senão os da
finança”, o que sendo certo não deriva do liberalismo mas sim do
capitalismo e da sujeição da força de trabalho, a única criadora de valor, à
condição de mercadoria. O que o proteccionismo por si só não virá alterar
mas poderá provocar, na sua defesa e pelos seus defensores, ilusões de
soberania nacional por que se luta como “lugar” e espaço da luta de classes.
Num estádio de desenvolvimento das
forças produtivas que torna a autarcia económica inviável, a pretensão de a
impor – ou darem-se passos para a impor – são perigosíssimos, também em termos
de dicotomia guerra ou paz, pois esta última está longe dos desígnios de
uma economia armamentista num mundo mundializado, regionalizado ou de
proteccionismos nacionalistas.
Se a realidade é interpretada no
contexto (ideológico) imposto pela correlação de forças numa situação de luta
de classes, há que ter, a partir de outra ideologia (que é a nossa) e da tomada
de consciência pelas massas, a clareza de ver que as opções alternativas
liberalismo/proteccionismo não são encaradas
como fautoras de alterações na correlação de forças (embora
necessárias pela insuportabilidade
das situações sociais, isto é, níveis de vida),
e se possa perder a perspectiva da luta de
classes, sem a qual tais alterações serão
ilusórias e não contribuirão para a humana e indispensável transformação das
relações sociais.
Termina Sapir que “as formas da política do futuro estão por
encontrar” e deixa sugerido que o seu sentido geral não está falho de
dúvidas. Mas não se pode desconhecer que há quem esteja convicto que o futuro não
é o proteccionismo num mesmo contexto de relações sociais inalteradas.
É o
socialismo em espaços nacionais de povos soberanos.
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