domingo, julho 31, 2011

Era em Caxias



Era em Caxias, trinta homens na sala 2, rés do chão, direito.
O Mirão era o "chefe de sala". E era o Herberto, e eram os 5 de Alpiarça, dos quais o Abalada, o Álvaro, o Facalhim, o Machado - como o Blasco - já morreram... , e eram 
Éramos 30 homens encarcerados pela PIDE. De todos sei, e queria dizer, o nome. Estão em mim gravados mas, nesta manhã de domingo, 47 anos passados, ficam apenas os já lembrados. Porque vieram aos dedos dois nomes, porque aqueles cinco povoam o meu cemitério interior. 

Reivindicáramos, lutáramos, e ganháramos, uma hora de música por dia. Ao fim da tarde, antes de jantar.
O gira-discos, trazido pelas famílias, entrava, com os discos bem minuciosamente inspeccionados pelo "funcionário da PIDE" destacada para a cadeia, que muitos rejeitava. Orquestas e autores "do lado de lá", com nomes terminados em itch, ef ou of eram, por norma, rejeitados. Fados, eram todos aceites, como uns Fados de Coimbra, cantados por um tal dr. José Afonso, num disco de 45 rotações, com 4 faixas, em que uma se chamava os Vampiros (esta será, talvez, uma outra estória para um outro domingo de manhã).
Para este domingo, para me alegrar com o "delicioso pungir de acerbo espinho" - e intenção de "oferta" a quem me possa vir a ler e ouvir -, fica o registo do disco mais ouvido, que, senão a todos, a quase todos encantava e nos tirava da cadeia durante pouco menos de um quarto de hora, a sinfonia clássica de Prokofief que, apesar de assim se chamar, entrara excepcionando a regra pidesca, talvez por o tal Prokofief se chamar Sérgio e o disco vir em meu nome,

Bom domingo, como horas de domingo eram todos aqueles tempos de fim de tarde com gira-discos na sala e com Prokofiev e outros a visitarem-nos.
Era em Caxias. 30 homens na sala 2 rés do chão direito. Em Julho de 1964.

6 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Que lindo "post"!!!!
Que admirável Sinfonia!!!
Este "post" também mostra como eram e são aqueles que lutam por um Mundo Novo!

Um beijo.

Justine disse...

Comovente de tão vivido! Comovente e belo ver-te a "reger" a orquestra:)))))
Aqui estou, ao teu lado!

GR disse...

Histórias de vida, tão dura.
Ficamos com um nó na garganta quando falas da brutal prisão, mas, contagias-nos com a tua alegria e sentimento de liberdade, quando começamos a ouvir a música.
Se vocês conseguiram vencer, nós também não iremos parar e seguiremos os passos e a vontade que os Resistentes nunca deixaram de ter e de lutar.

Grande Beijo,

GR

Anónimo disse...

Sérgio, em grande, na mouche!

Em tempos cada vez mais complicados é sempre um refrigério um ancoradouro com gente lúcida a labutar na escrita.

Força!

Que te não doa nunca a pena!

Um abraço

João Simões - Tomar

bettips disse...

Lutar por uma hora de música... ia a dizer como J. que é tão comovente que a memória conta em lágrimas e desfaz o nó. Destes anos.
Será impossível re(escrever)viver, só quem soube estar certo desde o início.
Com os olhos postos em FUTURO.
Abç

Frederico Mirão disse...

Sergio tambem eu não posso esque-cer teu nome entre tantos dos com-panheiros da sala (cuja lista con-servo)e cuja composição ere de tem-pos a tempos alterada por transfe-rência de fracções importantes.Tam-bem não esqueço o curso elementar de Estatística que nos deste,de que conservo cópia manuscrita; nem aquela tua «lição» de Economia,in-tegrada nas actividades culturais que organizavamos.com os companheiros sentados nos bancos corridos à volta da mesa das refei-ções.Recordas-te que bruscamente se abriu a porta da cela e entrou o pide director do Forte,que se sentou e disse para continuarmos.
Não será necessário descrever a nossa ansiedade'.Mas tu continuas-te com toda a naturalidade.Ele fi-cou 8 ou 10 minutos e saiu sem qualquer reacção.
Mas é completamente impossível dar aqui ideia,ainda que pálida,do «mun
do» de Caxias e do sofrimento e da camaradagem que o impregnava.Não es
queço aqueles camaradas que sofre-ram imensamente mais que nós,nem os
motivosque levaram o fascismo sala-zarista a meter-nos na cadeia, al-guns por muitos anos.Nem esqueço a premente necessidade de conscien- cializar todo um povo para evitar que,sob formas mais adaptadas ao tempo presente,se perc am direitos tão duramente conquistados e se restabeleça a escravidão dde um po-vo. Continuemos,portanto.
Um grande abraço para ti.