odiario publicou a intervenção de Margarida Tengarrinha na sessão realizada nos 50 anos do assassinato de José Dias Coelho.
Já nos referimos, aqui, a essa intervenção. Com o enorme respeito e a admiração que nos suscitou ao ouvi-la. Ao vê-la reproduzida na íntegra, queremos transcrevê-la. Aqui vai, com um nó na garganta e um agradecimento no punho erguido.
José Dias Coelho
- cinquenta anos depois da sua morte
- cinquenta anos depois da sua morte
Margarida Tengarrinha
Esta é, com toda a probabilidade, a última vez (sim, a última vez... porque já tenho 83 anos), que participarei numa cerimónia de homenagem ao Zé, recordando-o, neste dia 19 de Dezembro em que foi brutalmente assassinado.
Por isso, e porque o camarada Jerónimo certamente abordará a sua biografia como militante comunista, eu falarei dele num registo mais íntimo: a intimidade criada em mais de uma dezena de anos em que partilhámos desde as lutas estudantis e pela Paz às tarefas comuns, desempenhadas juntos na clandestinidade, de fornecer documentação falsa que defendesse os camaradas da vigilância da PIDE, de procurar renovar graficamente os documentos e a imprensa partidária, de iniciar um arquivo fotográfico do Partido e a partir dele redigir “A Resistência em Portugal’, assim como suportarmos juntos a ausência da família e dos amigos, a dolorosa separação da nossa filha, mas, juntos também, a felicidade do nascimento da mais nova e descobrirmos a alegria das pequenas coisas com um sabor intensificado pela austeridade do dia-a-dia, as festas de amor vividas com a força de não sabermos se, na madrugada seguinte, bateria à nossa porta uma brigada da PIDE a sobressaltar-nos na cama e a separar-nos. A constante ameaça da prisão.
Mas foi muito mais dura do que isso a separação imposta pelo crime que ali, na rua que hoje tem o seu nome, o tomou mais uma vítima do fascismo.
Não o vi depois de morto, só soube da sua morte no dia em que o enterraram. Não fiz, pois, o que se chama “o luto” e por isso arrastei dolorosamente ao longo dos anos coisas por dizer, remorsos por não ter dito, lamentos que não expressei.
Hoje, cinquenta anos passados depois da sua morte, vem-me claramente à ideia aquele livro de Anna Seghers – “Os mortos continuam jovens”. Porque a verdade é que, nem eu, nem ninguém que o conheceu poderá recordá-lo de outra forma que não seja aquele homem na força da vida, jovem e entusiasta. Sim, os mortos continuam jovens e ele, jovem para sempre.
Jovem e “sem vocação para a morte” como disse Eugénio de Andrade no poema “Discurso tardio à Memória de José Dias Coelho”:
"...Morre-se de ter uns olhos de cristal,
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios..."
morre-se de ter um corpo, quando subitamente
uma bala descobre a juventude
da nossa carne acesa até aos lábios..."
Ou ainda, como o seu grande amigo José Cardoso Pires afirmou na primeira homenagem a José Dias Coelho logo a seguir ao 25 de Abril, na Sociedade Nacional de Belas Artes em 19 de Junho de 1974, dia em que, se fosse vivo, o Zé teria feito 51 anos:
“Sabemos que é um capítulo, ódio ou máscara do medo, a morte imposta aos militantes da liberdade. Mas sabemos igualmente que é dela que o fascismo faz moeda própria e alimento essencial, que onde haja exploração do homem está ela, a morte, disfarçada de comum e natural, e que, irmã traidora da fome, tem na guerra, em todas as guerras, o seu lucro mercenário. (…) É a morte, morte, sempre a morte, que aparece como exibição imperialista de orgulho e de poder. Por isso é que os verdadeiros revolucionários amaram e defenderam a vida com o risco do último sacrifício e entre esses, Dias Coelho, o meu amigo de longe e para sempre. Poucos como ele tiveram tão saudável e empenhado gosto de viver, e raros, raríssimos, usaram de tão serena tolerância no desejo de compreender e lutar”. Assim falou dele o amigo José Cardoso Pires.
E tinha razão, mesmo para além do que directamente conhecia. Gosto de viver, desejo de compreender e de lutar poderia ser uma biografia sintética do Zé.
E de lutar em diversas e variadas lutas, começando pelas suas intimas e não confessadas. Uma batalha que se inicia a partir de dentro de si próprio, entre a sua passividade de artista contemplativo que se expressava nos seus desenhos de uma simplicidade procurada e depurada, as suas “Líricas” e outros desenhos intimistas, mas por outro lado, como defensor activo do neo-realismo, uma arte militante e de combate, uma arte do povo, pelo povo e para o povo, pela qual se exprimiu também em muitos dos seus trabalhos de desenho e escultura.
Foi talvez na gravura “Morte da Catarina Eufémia”, gravura empenhada e revolucionária, mas de um claro lirismo, que melhor conseguiu a difícil simbiose entre o lirismo que lhe era próprio e a arte militante e de combate, que defendia.
Quanto ao seu “desejo de compreender”, o seu desejo de compreender tinha expressão na ideia de que, em qualquer momento da história, qualquer que seja o contesto social e político, é essencial compreender os homens. Foi essa sua característica pessoal que o levou a estabelecer relacionamentos não só com os intelectuais ligados ao Partido Comunista, mas ainda com muitos outros que, fora da organização, aceitavam colaborar em acções comuns, tal como disse o meu irmão, José Manuel Tengarrinha, acentuando que: “o prestígio de Dias Coelho e a confiança que lhes merecia [aos intelectuais sem partido], foi um importante factor de alargamento da frente intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra e de credibilidade aos intelectuais servidores do regime.”
Isto no período da guerra fria e das tentativas de isolamento do Partido Comunista. “É nestas condições [diz o meu irmão], que podemos avaliar as grandes dificuldades do trabalho político desenvolvido por José Dias Coelho e o mérito da sua influência no campo intelectual”.Eu posso testemunhar que, no decurso das várias tarefas e na vida partidária, o Zé nunca abandonou esse desejo de compreender. E assim, nos dois últimos anos da sua vida, foi para ele como que um deslumbramento esclarecedor a alteração crítica à linha do Partido desenvolvida a partir da fuga de Peniche, realizada no dia 3 de Janeiro de 1960.
De facto, desde Janeiro de 1960, mais concretamente a partir da reunião extraordinária de Fevereiro desse ano e, com a aprovação dos documentos “A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de direcção” e “O desvio de direita nos anos 1956-1959″, na reunião do Comité Central de Março de 1961, desenvolveu-se em todo o Partido um vivo debate critico (em que nós participámos activamente) ao desvio oportunista de direita e, consequentemente, à errada concepção da possibilidade de derrubamento do fascismo por uma qualquer “solução pacífica”, hipótese que era admitida desde fins dos anos 50 e tornada oficial a partir do V Congresso do Partido, realizado em Setembro de 1957.
A crítica foi dura, mas clara e lógica: - dado o carácter da ditadura fascista, determinada a manter o poder e resistir até ao fim por meio de uma política de repressão feroz, não era possível manter a ilusão de “uma transição pacífica” que vinha a ser admitida no Partido, por influência do chamado “Relatório de Kruchov” e desenvolvimentos posteriores a partir do XX Congresso do PCUS.
A orientação de que o derrubamento do fascismo só poderia ser efectuado por meio de uma solução violenta, uma insurreição popular, a luta do povo em união com os militares revolucionários, vencendo e destruindo o aparelho militar e repressivo fascista, viria ser aprovada no VI Congresso, juntamente com o Programa para a Revolução Democrática e Nacional. Quando o VI Congresso se realizou, em Setembro de 1965, já o Zé tinha morrido e o Congresso prestou-lhe uma sentida homenagem.
A rectificação ao desvio oportunista de direita, sem ilusões de saídas pacíficas, em cuja discussão o Zé participou activamente, deu-lhe a clara consciência do caminho real, muito duro e difícil, que se apresentava pela frente, que havia que assumir e enfrentar - o caminho da prisão e da tortura, da morte e do sangue derramado.
Ele sabia, portanto, os perigos que enfrentava.
Hoje, como então, os oportunismos tiram força à luta e aos combatentes, porque iludem a realidade e não perspectivam nem o caminho, nem apontam claramente os objectivos.
José Dias Coelho deu a vida, consciente dos perigos que enfrentava e certo de que a sua luta conduziria ao Portugal socialista pelo qual, morreu.
19 Dezembro 2011
Obrigado, Margarida!
5 comentários:
Não tenho capacidade para comentar. Este texto nem é para comentar. É para guardarmos dentro de nós e nunca o esquecer.
Muito, muito bonito! De se ficar com um "nó na garganta", sim...
Forte comoção nos trás este texto, logo nas primeiras palavras.
A emoção das palavras da camarada Margarida, a tua cumplicidade na dor da perda irreparável do heroico militante comunista, assassinado com toda a frieza pelas mãos dos carrascos fascistas. Um post a partilhar.
Para a nossa querida camarada Margarida um grande Bj.
GD BJ,
GR
"Na curva da estrada
há covas feitas no chão
e em todas florirão rosas
de uma nação"
Mais uma... e tão bonita!!!
Comovene, corajoso e valorizando a linha do nosso Partido que Dias Coelho ajudou a construir e da qual nos orgulhamos.
Um grande abraço para Margarida Tengarrinha, que nos trouxe esperança no dia triste de 25 de novembro de 1975, no Centro de Trabalho do PCP, no Porto.
Um beijo.
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