A mentira, seja sob forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é
inaceitável. Sobre isso não vale a pena dizer mais nada. Os governantes não tem
obrigação de dizer a verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a
mentira — mas nenhuma cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por
exemplo, para esconder, até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da
moeda, ou quando está em curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas
ou para o Estado, sensível à revelação irresponsável da verdade. São excepções,
mesmo muito excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori, quando
finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas cobertas
pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando interrogado
directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento em que é
proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a proteger um
bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas vezes, mas os
limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste tipo de
“sombras”.
Mas não é, de
todo, o caso da história dos SMS, nem do misterioso caso das estatísticas dos offshores, que nada
justifica serem cobertos por qualquer “manto diáfano” de mentiras, meias-mentiras,
sugestão de mentiras e omissões da verdade. A cabeça de um ministro ou a honra
de há muito perdida de um ex-governo estão em causa? Não mentissem, nem nos
enganassem. Mas, dito isto, também é preciso ter muito cuidado, para que a
mediatização medíocre das redes sociais e de alguma imprensa não confunda
questões sérias com outras de menor gravidade. E o caso Centeno e os milhões
dos offshores não são comparáveis em importância, sendo que toda a gente já percebeu o
que se passou no primeiro caso, e ainda muito pouco se percebeu do segundo.
O que sabemos
sobre o dinheiro saído para os offshores durante a governação PSD-CDS? Sabemos que foi muito, muitos milhares de
milhões de euros, de que os dez mil milhões de que se fala agora são apenas uma
parte. Sabemos que uma parte saiu legalmente e também sabemos, por vários
processos em curso, que outra parte saiu ilegalmente. Vamos deixar para já a
parte ilegal, de dinheiro de pagamento de subornos, de corrupção, de negócios à
margem da lei, e vamos apenas falar do que saiu legalmente, e nessa parte
podemos apenas ficar-nos por esta magra fatia de dez milhares de milhões que
não foram devidamente incluídos nas estatísticas e sobre os quais não sabemos
ainda até que ponto os procedimentos de verificação habituais pelo fisco se
realizaram, ou seja, se são resultado de actividades legais sem mácula fiscal.
Por que é que isso aconteceu e o que é que isso significa?
Vamos seguir a
mais benévola das hipóteses, de que tudo estava legal, e que apenas não se fez
o registo estatístico. Comecemos por um ponto prévio que é verdade para todas
as histórias que envolvem offshores. Já ouvi dezenas de explicações esforçadas para justificar por que razão
as pessoas e as empresas colocam o dinheiro nos offshores, desde a fuga ao
conhecimento do património nos divórcios milionários até à protecção de
património face a credores, aos pagamentos a jogadores de futebol, passando
pelas necessidades de pagamentos no comércio internacional. Tudo é coberto por
dois mantos: um é de que se trata de processos legais, por isso incontestáveis
pela crítica; o outro é que, havendo paraísos fiscais em qualquer outra parte
exótica do mundo, não é possível acabar com eles em qualquer outro sítio. Mas
isso não implica que se considere normal o uso de offshores e, numa
sociedade em que os governantes se indignam com os direitos “adquiridos” dos
mais fracos, tenham uma soberana indiferença face a práticas dos mais ricos que
roçam a ilegalidade e que prejudicam, e não pouco, a riqueza do país. E quando
isto se passa em tempos em que os governantes fazem um discurso de austeridade
contra os que não podem fugir aos impostos e aos cortes, e são indiferentes às práticas
dos mais ricos de tirar dinheiro, riqueza, do seu país, revolta. Este é o pano
de fundo em que podemos discutir esta questão, e aplica-se como uma luva ao
Governo PSD-CDS, onde o ataque aos mais fracos foi a regra, e a complacência
com os mais poderosos foi também a regra.
No fundo, no
fundo, o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do Governo
Passos-Portas foi que a recuperação do país passava pelo aumento da riqueza dos
mais ricos, que traria por arrasto uma melhoria das condições de vida dos mais
pobres. Era em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em baixo deveria
haver “ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam mais acima do
que deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas posses
habituais”. Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa. Dêem
as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na questão do
salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário social-democrata, de
que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e é tida como uma
violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem mais do que a
“economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por isso, a
indiferença face ao que acontece com os offshores é completamente
natural.
Este é,
insisto, o pano de fundo da interpretação mais benévola da falta de dados sobre
os offshores: que saíssem dezenas de milhares de euros do país, não interessava aos
governantes porque não estava no centro das suas preocupações, como estava
cortar reformas e salários e levar o fisco até aos cabeleireiros e aos
biscates. Tratava-se de uma prática normal da “economia”. Mas se esta é a
interpretação mais benévola, não é a mais sensata, como se vê pelas explicações
atabalhoadas que governantes do tempo do PSD-CDS têm vindo a dar sobre o
que aconteceu. E aqui é que, como no caso de Centeno, entendo que é uma afronta
para os portugueses tomá-los por parvos, só que neste caso num assunto muito
mais grave.
Desde Passos
Coelho, furioso e malcriado na Assembleia, até ao passa-culpas do anterior
secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, até ao silêncio da
ex-ministra das Finanças que acha que não é nada com ela, todos estão a
tomar-nos por parvos. Afinal, a culpa foi dos serviços que não fizeram a
estatística devida, ou dos procedimentos informáticos, que, pelos vistos, foram
modernizados só para um dos lados do escalão de rendimentos, mas que parecem
funcionar muito mal no topo dos rendimentos, porque, tanto quanto eu saiba, não
foram os funcionários públicos, nem os reformados, nem os empregados do
comércio, nem os operários, nem os enfermeiros, nem os polícias, que colocaram
o dinheiro em offshores. Aliás, já não é a primeira vez que este tipo de implausibilidades
acontecem nas finanças do Governo PSD-CDS, como foi o caso da “lista VIP”, já
muito esquecido.
Mas há pior: o
secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não
deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores. Das duas,
uma: ou foi grossa negligência, ou preferiu olhar para o lado, visto que os
números eram incómodos para o Governo. Mas, mesmo que seja assim, de novo a
mera sensatez obriga-nos a considerar como absolutamente implausível que ele,
responsável pelo fisco, nunca se tenha perguntado, mesmo numa conversa casual: “Olhe lá, senhor director-geral, quanto
dinheiro está a sair do país para os offshores?”. E Passos e a ministra também nunca sentiram sequer
curiosidade sobre esse aspecto crucial da nossa economia, para verificarem que,
afinal, não havia a estatística?
Presumir que tenha sido
assim é tomar-nos por parvos, insisto. E eu não gosto.
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Nós também não!