(porque muito bem escrito - a meu gosto -,
porque diz coisas que quero ler e aprender a dizer)
e por isso reproduzo
(do Expresso-curto de hoje, de Germano Oliveira):
«O QUE EU ANDO A LER
Creio que o fim da adolescência é uma circunstância: não acontece aos 18 da maioridade
legal ou aos 21 da licenciatura nem aos 30 dos empréstimos à habitação, não é
certamente aos 40 das lipoaspirações e dos implantes de cabelo ou aos 50 dos
despedimentos amigáveis nem aos 60 do temor de um tumor, há adolescentes
licenciados endividados calvos gordos desempregados doentes com as idades
todas, creio que a adolescência, a genuína adolescência, aquela
além-envelhecimento e antientorpecimento, a que é determinada pela expectativa
de tornarmos o nosso mundo um lugar transformado pelas nossas intervenções,
essa adolescência tão vaidosa de esperança e desejosa de feitos só é desfeita
pela introdução da morte, quando as infinitas ilusões juvenis se tornam
repentinas desilusões adultas assim que atendemos o telefonema que anuncia a
finitude das nossas pessoas:
- ele morreu
ou
- ela morreu
e depois silêncio, o rigoroso silêncio da dor, nenhum adolescente sabe manter o
diálogo da morte, nem os envelhecidos tão-pouco, ficar subitamente crescido é
ser vítima-sobrevivente da colisão de nos noticiarem a primeira morte da nossa
intimidade de avós pais tios maridos mulheres cunhados sogros namorados irmãos
amigos e demais prolongamentos de afinidade: a adolescência é ir passar o fim
de semana a casa da mãe ou do pai ou de ambos se ainda estiverem juntos e
trazer melancias para guardar no frigorífico e hambúrgueres no congelador, é
almoçar um assado ao domingo à tarde enquanto a avó conta a história do baile
em que o avô esse galã a seduziu em 1925, é chamar o cunhado que sabe mudar
pneus quando temos um furo no Volkswagen, é fumar um cigarro com o sogro
enquanto ele se intumesce com o tempo da tropa em que entrou num bar e acabaram
todos à porrada (ele saiu-se bem claro que se saiu), é ouvir a adjetivação
viçosa da sogra sobre os novos músculos do Ricardo Araújo Pereira, é receber
uma chamada do irmão-muito-mais velho camionista a dizer que se sente sozinho
na viagem para Itália porque lá caramba há tanto covid, é insistir com o
namorado para não deixar a tampa da sanita levantada e ficarmos furiosos-enternecidos
por ele nunca o fazer, é estar no Primavera Sound e aquela amiga que não
conseguimos encontrar na multidão escrever “a vida vai acabar num instante.
merecemos estar todos juntos!”, exclamação, merecemos sim, a adolescência é
estar com gente gente gente, toda a nossa e tão querida gente, mas um dia o
telefone toca e fica gente-1, é subtração irreparável, e depois fica-se com
medo, tanto mas tanto tanto medo, todo o tanto e tão maldito tanto, do dia do
segundo telefonema, gente-2, eles morrem-nos, meu Deus, mas os números deles
continuam no nosso telemóvel, 91 qualquer coisa, o que se faz ao número de um
morto?, digam-me o 5G do além e eu fundo uma operadora de telerressurreição,
que frase adolescente, eu sei, mas apesar de adulto ainda me recordo das
técnicas juvenis, é da saudade desse tempo, todo esse distante mas tão bem
lotado tempo que acaba com um telefonema - e então não se perde a expectativa
de tornarmos o nosso mundo um lugar transformado pelas nossas intervenções, o
mundo é um lugar demasiado imperfeito para o abandonarmos aos seus defeitos,
mas perde-se a inocência, essa fundamental condição adolescente, porque a cada
feito notável da nossa vida lembramo-nos de quem faz falta, toda a aguda e tão
insuperável falta, para celebrar connosco essas conquistas esporádicas, os
adolescentes não têm tempo para emoções destas, estão demasiado ocupados da
gente toda, não sabem como dói uma memória, é nisto que creio porque ficar
adulto é isto que li:
“Um dia alguém morre apressadamente e as referências
estruturais da memória são elementos geométricos
e decorativos no interior das casas, impressos
nos fragmentos de luz. E o amor
cabe dentro da morte como punhados de terra
em mãos fechadas”,
está na “Autópsia” do José Rui Teixeira, poeta da minha
terra, o Porto onde acabou a minha adolescência, foi lá que fiquei adulto que é
sentir desta maneira:
“a morte dos outros é mais difícil do que a nossa, porque vivemos a morte deles
e não viveremos a nossa. E porque a morte dos outros significa o
desmantelamento do nosso passado, a inexistência do nosso passado, do qual
deixa de haver prova indiscutível. Ficam imagens, objectos, detritos, coisas em
gavetas que nada dirão aos vindouros. E os nossos mortos fazem-se não apenas pó
mas nevoeiro, figuras extintas, indistintas, irrecuperáveis”,
é das “Imagens Imaginadas” do Pedro Mexia, ando a
folhear, o Mexia é do Expresso que é o jornal da minha vida adulta, o meu
gente-1 ia ter orgulho de eu publicar onde o Mexia escreve, é preciso lembrar o
que os mortos sentem por nós, reparem no verbo: “sentem” terceira pessoa do
plural do presente, não é amor passado mas amor presente, é amor até com data,
gente-1 faria anos daqui a dias, parabéns:
“O passado de qualquer ser humano transforma-se num fantasma, mas temos de
fazer um esforço e recordar, porque recordar engrandece-nos, eleva-nos para lá
da vida e da morte, para lá da História, da política e da humilhação. Quem
recorda e o faz com toda a profundidade devida transforma-se num deus”, é do
Manuel Vilas e do seu “E, de repente, a alegria”, é o que ando a ler,
o Manuel Vilas sofreu gente-1 e depois gente-2, pai e mãe, gosto muito do
arranque do livro, é assim, todo este aparentemente adulto mas na verdade tão
adolescente assim: “Tudo aquilo que amámos e perdemos, que amámos imensamente,
que amámos sem saber que um dia nos seria roubado, tudo aquilo que, após a sua
perda, não conseguiu destruir-nos — embora tenha insistido com forças
sobrenaturais e procurado a nossa ruína com crueldade e afinco — acaba, mais
tarde ou mais cedo, transformado em alegria”.(...)»
... e termina bem, desejando-me;
«(...) Tenha um bom dia.»
... e, quando procurava espaço para dizer... sei lá...talvez gostei, obrigado!,... logo tropeço nos anúncios, no "assine isto" e "leia aquilo", num fecho com "boa cama boa mesa".
Ora bolas para os desmancha-prazeres!
1 comentário:
Boa prosa.Só mudava:"A morte dos outros é mais difícil que a nossa...para ,"A morte dos que amamos é mais difícil que a nossa...".Porque li com subjectividade.Bjo.
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