OS FACTOS (desta semana) E A ARTE DE OS MANIPULAR
Artefacto à
- Aparelho ou engenho construído
para determinado fim.
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
Os factos (relevantes) nesta 1ª semana de Junho de 2020 são
- o “esquecimento” do acórdão do Tribunal Constitucional Alemão;
- a “sem-importância” do Conselho Europeu face à iniciativa franco-alemã;
- a decisão da Comissão de dotar a recuperação com 750 mil milhões €;
- a decisão do BCE de aumentar com mais 600 mil milhões € a dita recuperação;
- a nomeação pelo 1º ministro português de um estratega hors-governo para a recuperação da economia portuguesa;
- a apresentação, pelo presidente do PSD do plano para recuperação da economia portuguesa;
- depois de Marshall, a ressus-citação de Keynes na ideologia da classe.
Comento, seguindo a ordem, mais ou menos arbitrária, dos factos relevantes porque todos se interpenetram, com o meu ofício de cidadão-economista, isto é, a minha “arte” embora me falte engenho de tantos “artistas”, alguns que até engenheiros são (e de minas).
Toda a reflexão tem um substrato
ideológico, sobretudo a que se afirma não-ideológica.
Quem aborda temas económicos
move-se ideologicamente entre duas posições que diria extremas: i) a de a economia ser uma ciência social que parte do axioma do
ser humano integrado na natureza a recorre aos recursos desta, colhendo-os e
transformando-os para satisfazer as suas necessidades básicas e as que decorrem
do seu percurso socializante, respeitando o
meio e os outros como iguais e
diferentes, ii) a de ser a
economia uma técnica de combinação
óptima dos recursos e dos seres humanos como produtores e distribuidores,
visando objectivos de acumulação na posse de uma classe social dominante, sem
ter em consideração a finitude dos recursos e a condição humana da mercadoria
força de trabalho.
Entre os dois extremos há uma larga gama
de posições ideológicas ou que ideologicamente se exprimem (ou não) e que como
ideológicas deverão ser identificadas. Nesta 1ª semana de Junho de 2020 duas referências
ilustram o enunciado, a meu ver e como reflexão assumidamente ideológica.
A consideração do Plano Marshall como exemplo de auxílio prenhe de solidariedade num
final de guerra devastadora é, isso sim, exemplar de facto relevante do tempo que se vive e da manipulação que emprenha
essa referência. Para o comprovar poderia socorrer-me do que tenho escrito sobre
esse Plano mas, fugindo à auto-citação, cito do livro Os novos muros da Europa
de Carlos Santos Pereira: “O Plano
Marshall constitui antes de mais um investimento. A economia americana tem
importantes excedentes a escoar. Os apoios são fulcrais para a recuperação da
Europa, mas servem em boa parte para subsidiar as exportações americanas. Tanto mais que, através dos Gabinetes Marshall (então secretário de
Estado), e de outros instrumentos junto
dos governos europeus, os americanos têm uma palavra decisiva na gestão dos
créditos. Dean Acheson,
o sucessor de George Marshall na secretaria de Estado americana, reconheceria
mais tarde que «estas medidas de auxílio
e reconstrução só em parte são motivadas pelo humanitarismo; o Congresso
autorizou e a presidência está a levar a cabo uma coisa fundamental para os nossos próprios interesses»…” (pág.
39).
Quanto a Keynes, a sua aparição
é frequente, desde os anos 30 do século XX.
Lord Keynes fez escola. A sua intervenção na “Grande Crise” foi decisiva
para se ultrapassar o péssimo bocado por que passou o sistema capitalista, mas
foi pedagógica, didáctica. Porque foi de estudioso que aprofundou o
conhecimento da economia política e
que, de certo modo, se aproximou da crítica
da economia política. De que, no entanto, só se aproximou. E ficou do lado
de dentro do sistema, estudando-o e ensinando a partir da detecção de pontos
fracos e procurando para eles respostas. Que não são possíveis sem a sua crítica,
não só como é mas como vai sendo, cavando fundo nos seus
caboucos, nas relações sociais de base
sobre que assenta, na exploração do homem pelo homem, na mercadorização da
força de trabalho dos seres humanos, única criadora por capaz de criar valores
de troca que, na unidade dialéctica com os valores de uso, satisfaçam
necessidades humanizando-se (esta é atrevida síntese de muito complexa
construção).
Da contribuição de Keynes para a crítica da economia política (limitada
mas estimável) resultou muito de importante para a ciência económica, para a macroeconomia.
Pessoalmente, vim confirmando o que hoje afirmo. Algum desse contributo só
tarde o apreendi como vindo de Keynes porque parte dele foi indirecto, no ISCEF,
pelos seus (diria) seguidores mas não confessos, via Samuelson por exemplo. Entretanto,
em Coimbra (na FD da UC) mais abertamente se ensinava/aprendia/falava de Keynes.
Mas o que aqui traz essa importante referência é o contentamento
contentinho com que alguns invocam o nome de Keynes para (ou por) ser, de novo,
o putativo vencedor deste mau momento do capitalismo. Na minha opinião, muito
se enganam. Aliás, atribuir a Keynes e seus continuadores o mérito dos anos do
pós 2ª guerra mundial na sua “guerra fria” com o “socialismo real” parece-me
abusivo. Leio Bretton-Woods como derrota de Keynes e a abertura, a prazo,
para o monetarismo bem contrário a Keynes. Mas estas seriam longas e lentas reflexões
e discussões.
Para este comentário, sublinho que estimo redutor ver o contributo de
Keynes como a valorização do papel do Estado e considerar que este despejar de milhares
de milhões de euros pela “Europa” que é parte da União Europeia é “bazucada” à Keynes. Sendo esta, como
é, a “acção resoluta” (Luís Marques, Expresso-30.05) de quem tem o poder
(dado por quem?, a quem?, e como?) de imprimir
dinheiro, ela não pode ser equiparada ao que se fez antes da 2ª Guerra
Mundial, e não se inspira em Keynes, nem as “actuais
autoridades europeias” se podem considerar instituições de um Estado.
Nos anos trinta, a moeda dominante no comércio internacional era a
libra, depois da guerra passou a ser o dólar, mas quer uma quer outra moeda
tinha um valor concreto, material, de troca, que o dólar (35 US$=1 onça de
ouro) deixou de ter com a decisão unilateral de Truman da inconvertibilidade,
em 1971, segundo passo, depois de Bretton-Woods, para o monetarismo e o
neo-liberalismo. E nada mais contrário a Keynes.
Por isso, direi que invocação de Keynes é um facto relevante mas é também a ilustração de uma manipulação evocando um salvador, um “bombeiro
sempre às ordens”.
Juntando os dois temas, para terminar o que aqui já não cabe, recorreria
de novo (porque está aberta) à pág. 39 do citado livro de Carlos Santos Pereira,
ao referir-se ao Plano Marshall: “Mas é sobretudo a economia americana que
beneficia de um poderoso estímulo. O domínio do dólar no sistema internacional
está garantido.” E foi garantido até à exaustão, até não haver ouro em
Forte Knox que chegasse para trocar pelos dólares em circulação e a dominar o mundo capitalista. Com/por moeda des-materializada
ausente do legado de Keynes nem, assumidamente, no de Marx.
Se o dólar trazia impresso o que se impunha a uma moeda,
a
confiança (IN GOD WE TRUST), a sua falta deixou de a justificar como
valor de troca.
De onde se levanta a questão: e os milhares de milhões (que ultrapassam o
bilião) de €uros* que vão jorrar por essa U.E. adentro, “generosamente”
concedidos por quem “imprime dinheiro”, que valem eles como “riqueza das nações”, de quais nações?
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não resisto… e deixo o testemunho pessoal de quem assistiu à gravidez e parto
do €uro como moeda (no PE, de 1990 a 1999): a moeda única, o €uro, foi gerado e
parido como coisa nenhuma, não tem contrapartida material, é um instrumento
fictício (como a dívida é uma armadilha desse fictício arsenal) engendrado
pelos que dominam a correlação de forças para se servirem dele para manter e
alargar o seu domínio. Até quando?
1 comentário:
Uma lição de economia.Sempre a aprender.Moedas,sem contrapartida ,tem dado origem a consecutivas crises.Um dia virá,em que o doente fica em como profundo...Bjo
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