É assim a memória. Parece estar tudo arquivado, ou em gavetas, e de repente – vá lá saber-se porquê… mas por alguma razão foi, e para as descobrir há os psicanalistas – desarquiva-se um episódio, abre-se uma gaveta onde um acontecimento vivido dormia a sono solto.
Hoje, foi este. Que exige ser contado.
O programa Zip-Zip na televisão, no único canal e a preto e branco, veio mostrar que havia um País que mexia, que era culto, que cantava e desmentia o Miguel Torga ("apetece cantar e ninguém canta"), e que prenunciava as mudanças, para que clandestinamente se lutava, inevitáveis porque a história não pára nos fascismos e nas guerras coloniais assim como não há incêndio que não se apague, como me dizia um velho amigo comandante de bombeiros, fazendo filosofia como Monsieur Jourdain fazia prosa sem o saber.
Com Ramiro Valadão a querer animar a televisão, logo um outro programa apareceu, o Curto-Circuito, aparentemente na mesma linha mas – aparentemente – com a garantia de que… não iria abusar da “abertura marcelista” como o Zip-Zip fizera. O nome de Artur Agostinho seria garantia para os próceres do regime. Era muito popular, e o seu passado nada mostrava de veleidades intelectuais esquerdizantes.
Mas o Zip-Zip deixara “pesada herança”, isto é, exigia coisas com… outro nível, e o Curto-Circuito lá procurava corresponder. Para um dos programas, convidou a Isabel da Nóbrega para ser entrevistada sobre a condição da mulher. E foi-lhe dito que poderia levar convidados seus, um ou dois, para comporem o painel. Lembrou-se de mim, até porque participáramos em iniciativas sobre o tema, e claro que eu estava disponível.
Tudo se arranjava com a produção, dizendo esta que não havia qualquer limitação (como a de eu ter estado preso uns anos antes)… salvo se tivesse tido intervenção activa no MDP-CDE nas recentes eleições de 1969. Ora eu, que não fora candidato por Lisboa, não parecia oferecer problema. Assim se comprovava que “fora de Lisboa, o resto era paisagem”, pois passara desapercebido a esses responsáveis da produção que eu fora candidato por Leiria. Mas não passou a outros mais atentos, até por ser essa a sua pidesca “profissão”, e fui desconvidado.
Então, em conluio, resolveu-se o seguinte:
Foi-me oferecido um bilhete de ingresso no Teatro Monumental, que era onde se fazia o programa com transmissão em directo; a Isabel da Nóbrega, no roteiro do programa, entrava sozinha para ser entrevistada sobre a condição e a situação da mulher – o que fez, brilhantemente, falando, por exemplo, da Adelaide Cabete em termos comoventes – e a entrevistadora (não me lembro quem) perguntava-lhe qualquer coisa sobre a discriminação no trabalho e a Isabel saia-se com esta (mais ou menos…): “de economia não sei nada, mas vi há pouco, ali na plateia, um jovem economista que sabe disso, podíamos pedir-lhe ajuda…”, os holofotes procuravam-me no meu lugar de coxia central e lá saltava eu para o palco.
Assim foi, e foi um “quarto de hora de glória” a perorar sobre o conceito marxista de trabalho, sobre exploração e discriminação, sobre Engels e a origem da família, do Estado e da propriedade privada… essas coisas.
E digo que foi um “quarto de hora de glória” porque estive na televisão a dizer essas coisas, porque elas foram muito bem recebidas – a revista Maria (ou foi a Crónica Feminina?) fez uma larga e laudatória referência à minha prestação (com foto e tudo), porque houve quem não tivesse gostado mesmo nada do enredo… e até parece que Marcelo Caetano, ao assistir ao programa telefonou ao Ramiro Valadão a perguntar o que era aquilo.
Há 40 anos! O que memória nos traz… e como nos dá força!
Hoje, foi este. Que exige ser contado.
O programa Zip-Zip na televisão, no único canal e a preto e branco, veio mostrar que havia um País que mexia, que era culto, que cantava e desmentia o Miguel Torga ("apetece cantar e ninguém canta"), e que prenunciava as mudanças, para que clandestinamente se lutava, inevitáveis porque a história não pára nos fascismos e nas guerras coloniais assim como não há incêndio que não se apague, como me dizia um velho amigo comandante de bombeiros, fazendo filosofia como Monsieur Jourdain fazia prosa sem o saber.
Com Ramiro Valadão a querer animar a televisão, logo um outro programa apareceu, o Curto-Circuito, aparentemente na mesma linha mas – aparentemente – com a garantia de que… não iria abusar da “abertura marcelista” como o Zip-Zip fizera. O nome de Artur Agostinho seria garantia para os próceres do regime. Era muito popular, e o seu passado nada mostrava de veleidades intelectuais esquerdizantes.
Mas o Zip-Zip deixara “pesada herança”, isto é, exigia coisas com… outro nível, e o Curto-Circuito lá procurava corresponder. Para um dos programas, convidou a Isabel da Nóbrega para ser entrevistada sobre a condição da mulher. E foi-lhe dito que poderia levar convidados seus, um ou dois, para comporem o painel. Lembrou-se de mim, até porque participáramos em iniciativas sobre o tema, e claro que eu estava disponível.
Tudo se arranjava com a produção, dizendo esta que não havia qualquer limitação (como a de eu ter estado preso uns anos antes)… salvo se tivesse tido intervenção activa no MDP-CDE nas recentes eleições de 1969. Ora eu, que não fora candidato por Lisboa, não parecia oferecer problema. Assim se comprovava que “fora de Lisboa, o resto era paisagem”, pois passara desapercebido a esses responsáveis da produção que eu fora candidato por Leiria. Mas não passou a outros mais atentos, até por ser essa a sua pidesca “profissão”, e fui desconvidado.
Então, em conluio, resolveu-se o seguinte:
Foi-me oferecido um bilhete de ingresso no Teatro Monumental, que era onde se fazia o programa com transmissão em directo; a Isabel da Nóbrega, no roteiro do programa, entrava sozinha para ser entrevistada sobre a condição e a situação da mulher – o que fez, brilhantemente, falando, por exemplo, da Adelaide Cabete em termos comoventes – e a entrevistadora (não me lembro quem) perguntava-lhe qualquer coisa sobre a discriminação no trabalho e a Isabel saia-se com esta (mais ou menos…): “de economia não sei nada, mas vi há pouco, ali na plateia, um jovem economista que sabe disso, podíamos pedir-lhe ajuda…”, os holofotes procuravam-me no meu lugar de coxia central e lá saltava eu para o palco.
Assim foi, e foi um “quarto de hora de glória” a perorar sobre o conceito marxista de trabalho, sobre exploração e discriminação, sobre Engels e a origem da família, do Estado e da propriedade privada… essas coisas.
E digo que foi um “quarto de hora de glória” porque estive na televisão a dizer essas coisas, porque elas foram muito bem recebidas – a revista Maria (ou foi a Crónica Feminina?) fez uma larga e laudatória referência à minha prestação (com foto e tudo), porque houve quem não tivesse gostado mesmo nada do enredo… e até parece que Marcelo Caetano, ao assistir ao programa telefonou ao Ramiro Valadão a perguntar o que era aquilo.
Há 40 anos! O que memória nos traz… e como nos dá força!
6 comentários:
Grande memória, e a descrição desse momento não podia ser mais correspondente a um momento de glória! Não vi o programa, claro, mas certamente estará ainda na memória de muitos homens e mulheres que também ousaram, nessa época, contra o regime estabelecido, para que a LIBERDADE fosse uma realidade futura e próxima no país.
Os "espontâneos" umas vezes arruinam os espectáculos... outras vezes têm momentos de glória. :-)))
Bela memória!
Abraço.
Não sabia desta tua 'estória', nem me lembro do programa que mencionas. Também a televisão andava praticamente fechada, via apenas os programas do Vitorino de Almeida...
Um beijo.
Um excelente retrato de época!
Não sabia ou não me lembrava desse episódio, mas foi mesmo um momento de glória.
Com passos desses também se foi construindo o 25 de ABRIL.
Um beijo.
Afinal somos a memória, a evolução o seu futuro.
Abraço!
Mário
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