segunda-feira, novembro 14, 2011

TáVisto


A PIRATARIA IMPUNE
1. É sabido que a velha pirataria marítima que, mitificada, até foi tema de estórias de aventuras que alimentaram leituras juvenis e filmes que fascinaram cinéfilos de décadas atrás, regressou recentemente a águas mais ou menos próximas da Somália: bandos de sujeitos identificados como somalis assaltam barcos, pilham carregamentos, assaltam pessoas, exigem resgates. É, enfim, uma forma óbvia de banditismo. Contra ele se organizaram acções de repressão e policiamento marítimo, acontecendo até que durante um certo tempo coube à marinha portuguesa a missão obviamente honrosa de comandar tais operações. É certo que não tem havido noticiário abundante acerca dessas ocorrências, talvez para não prejudicar as operações de vigilância e repressão, talvez para impedir o eventual estabelecimento de algum pânico relativamente à navegação naquelas zonas, mas é claro que esse regresso do banditismo marítimo suscitou a condenação activa da comunidade internacional e não despertou a mínima ressurreição do quase romantismo com que a acção dos piratas foi encarada retrospectivamente até há pouco tempo. Ao que parece, acções de pirataria marítima também sempre têm vindo a acontecer para os lados do Mar da China, mas as notícias a seu respeito são sempre tão raras e breves que não chegam a sensibilizar os públicos do Ocidente e a mobilizar as agências de informação que decidem de facto o que deve ou não chegar aos nossos olhos e ouvidos. Entretanto, quanto aos piratas somalis, de vez em quando chega a informação de que alguns forem presos, que prisioneiros seus foram libertados, mas sempre em tom discreto. Talvez porque os factos não dão para mais, talvez também porque o noticiarismo internacional tem outras prioridades.
2. Aconteceu há poucos dias, porém, que dois barcos nada militares, um canadiano outro irlandês, completamente desarmados e transportando carga exclusivamente constituída por medicamentos, foram assaltados em plenas águas internacionais por embarcações militares tripuladas por gente armada até aos dentes, como é costume dizer-se, impedidos de prosseguirem a rota que pretendiam e obrigados a aportarem em locais que não desejavam. Neles viajavam vinte e sete pacíficos civis de diversas nacionalidades, entre os quais cinco jornalistas. Quanto aos assaltantes, eram todos militares israelitas, o que obviamente agrava o perfil de efectiva pirataria marítima por eles praticada com todas as características necessárias à sua nítida definição: assalto em águas internacionais com escandalosa violação da liberdade de navegação e do Direito, uso da força armada, roubo de carga, rapto de pessoas. O pretexto para a prática de tão vergonhoso e escandaloso acto não é novo, mas nem por isso deixa de ser inaceitável à luz das mais elementares regras de convivência civilizacional: tratou-se, segundo o governo de Israel, de garantir o impedimento da chegada de armas à Gaza, onde, como se sabe, está confinado o Hamas, facção mais radical e, tanto quanto se sabe, maioritária, da expressão política do povo palestiniano. Mas não parece aceitável o entendimento de que medicamentos são o mesmo que bombas, sendo muito mais provável que o assalto israelita tenha tido como objectivo reforçar perante o mundo um facto revoltante: que o Estado de Israel pode cometer em assegurada impunidade todas as violências que lhe apeteçam a pretexto de garantir a sua segurança. Recuando umas décadas na História, encontraremos o mesmo argumento para justificar os mais abomináveis crimes.
3. E, perante isto, perguntar-se-á o que narrou e comentou a televisão portuguesa, questão que porventura é a que mais se adequa a estas duas colunas. A resposta é simples: narrou pouco e não comentou nada. Essa extrema discrição contrasta, é claro, com o clamor que na mesma televisão previsivelmente se levantaria na hipótese, de facto inverosímil por razões que não vêm agora a este texto, de o assalto ter sido praticado por gente de algum dos estados que um ex-presidente dos Estados Unidos um dia arrolou como membros de um alegado Eixo do Mal. Esta generosa discrição do telenoticiarismo português tem um nome: cumplicidade. Nessa condição, fica registado no seu imaginário cadastro, que já está abundantemente habitado por práticas semelhantes. Não, entenda-se, com vista a um qualquer balanço a fazer no futuro. Apenas para que não esqueçamos que género de televisão entra todos os dias em nossas casas.

(Obrigado, Correia da Fonseca)

3 comentários:

trepadeira disse...

Pirataria com assassinato das crianças e doentes à espera de comida e medicamentos que os assassinos,com o cerco(os "amigos" fazem-no a Cuba)e o congelamento de dádivas impedem de chegar.
Ainda espero ver os criminosos julgados e condenados,se não por qualquer tribunal,pelo povo.

Um abraço,
mário

Graciete Rietsch disse...

Parafraseando FIDEL a História se encarregará de os desmascarar e punir.

Um beijo.

GR disse...

Os assassinos serão alguma vez julgados?

BJS,

GR