- com a permissão do/o agradecimento ao Correia da Fonseca
VESTÍGIOS DE UM VELHO RANCOR
- É sabido que todas as semanas a televisão traz a nossas casas notícias novas. E más notícias. Saídas directa ou indirectamente dos gabinetes ministeriais, sobretudo do gabinete daquele senhor que fala devagarinho presumivelmente porque também pensa devagar, o que não seria mau se pensasse bem. Na passada semana, o mesmo ou outro por ele terá tido a ideia de suprimir generalizadamente os subsídios de Natal e de Férias, retalhando cada um deles em doze pedacinhos a adicionar às remunerações mensais Não se entende facilmente a vantagem nacional desta curiosa medida, apenas parecendo óbvio que seria um golpe último e provavelmente mortal no comércio que tem na quadra natalícia uma reserva de esperança na sua sobrevivência. É admissível que ao autor de tão curiosa ideia tenha parecido natural que os cidadãos reservem ao longo do ano, mês após mês, uma parte do seu ordenado de tal modo que, chegado o Natal, lá possa estar, reencontrado, o desaparecido subsídio. É, na verdade, uma ideia adequada ao crânio de quem não sabe o que custa a vida e de todo ignora que o que os portugueses vão acumulando ao longo do ano não são pequenas economias, mas sim necessidades e compromissos.
- Quanto ao esquartejamento do subsídio de férias, a questão pode ser ainda mais curiosa e sintomática. Prende-se com a histórica conquista pelos trabalhadores franceses em 1936, durante o governo da Frente Popular participado pelos comunistas, do direito às chamadas “férias pagas”. A medida foi pessimamente recebida pela direita, então remetida para as bancadas da oposição, e não apenas por alegados razões políticas: também por motivos de preconceito e segregação sociais. As senhoras e os cavalheiros das classes favorecidas e supostamente distintas arrepiavam-se só de pensar que um dia, em alguma esplanada da Cote d’Azur, poderiam sentir-se misturadas com gente da classe operária que ali fosse passar ainda que apenas dois ou três dias no gozo das suas férias. Essa repugnância, eventualmente plasmada em preconceito já desligado da motivação original, ter-se-á alastrado aos outros países que sucessivamente foram adoptando o pagamento de subsídio como reconhecida forma de justiça social. De qualquer modo, depois da conquista do próprio direito a férias, o subsídio assinala sem dúvida mais uma vitória dos trabalhadores e um elemento, ainda que porventura secundário, do chamado “Estado social”, também conhecido por “modelo social europeu”, que faz turvar de ódio a vista dos militantes do neoliberalismo puro e duro mais dos discípulos que o aprenderam nas cartilhas de Chicago. Vale lembrar, de passagem mas não talvez inutilmente, que essa doutrina alegadamente económica mas de facto sociopolítica teve a sua primeira aplicação prática no Chile de Pinochet.
- Como se compreenderá, o que talvez mais possa impressionar neste projecto de efectiva supressão dos subsídios de férias e do Natal, além de que a sua diluição decerto passaria a permitir a “prova” de salários afinal melhorados com consequências nos eventuais processos seguintes de actualização, é o lastro de rancor que algum patronato mantém em relação às férias dos trabalhadores. E não se diga que sou excessivo ou demasiado suspeitoso ao escrever isto: bem me lembro de ver e ouvir na televisão o senhor engenheiro Belmiro, espécime exemplar de um certo tipo de patrões em quem sobra a prosápia e falta a boa educação, quando não também a autocrítica e os escrúpulos, referir-se desdenhoso aos trabalhadores que fazem questão de irem “molhar os pés” nos fins-de-semana de Verão. A gente dessa, até por vezes parece custar que os trabalhadores se atrevam a respirar o mesmo ar que ela respira. Se esse velho rancor contamina ou não o projecto de eliminação dos subsídios de férias e do Natal é coisa que não está provada e que nem é possível demonstrar. Mas que as raízes dele existem, é histórico que sim. E esse facto é o bastante para suscitar não apenas a recusa mas também a indignação.
(crónicas no Alentejo Popular)
1 comentário:
Uma crónica com a caracteristica do Correia da Fonseca,com humor,alguma mordacidade e um sentido muito critico da actual situaçao.Foi-nos habituando ao longo de tantos anos a ouver a caixinha com os sentidos bem despertos.
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