No Alentejo Popular. Vale mesmo a pena ler!
1.Aconteceu em “Iniciativa”, programa da RTP Informação, ex-RTPN, canal contra o qual já alguém decretou a pena de morte, segundo consta. Escrevo “segundo consta” porque nenhum telespectador comum sabe ao certo o que vai sair do grupo de trabalho especialmente nomeado para dar parecer não vinculativo, mas decerto respeitável e atendível, acerca do futuro imediato da televisão pública. O que se sabe, isso sim, é que o referido grupo, de onde aliás já três elementos saíram por vontade própria, é presidido pelo dr.João Duque, economista que no ISEG dirige a produção em cadeia de jovens economistas de convicções neoliberais, criatura certamente estimável mas em quem não se adivinham méritos adequados à presidência de um grupo encarregado de opinar sobre televisão. Aconteceu, pois, em “Iniciativa”, como inicialmente se ia dizendo. “Iniciativa” é um programa concebido para se enquadrar perfeitamente nos sombrios tempos que vão correndo: dedica-se à “promoção do sucesso profissional” de cada qual, a estimular “ a formação, o empreendedorismo, os novos desafios”. Tudo boas acções, como claramente se vê, isto sem falar das intenções, que seguramente hão-de ser ainda melhores.
2.Aconteceu em “Iniciativa”, pois, aquela entrevista de que nem sequer poderá dizer-se que teve alguma característica excepcional: foi aquela como poderia ter sido outra sem que isso implicasse alguma diferença enorme. Por isso nem interessa nomear o ainda jovem entrevistado, tal como não é importante identificar a decerto não menos jovem entrevistadora. A conversa entre ambos foi fluindo, já desde o início nos havíamos apercebido de que aquele jovem licenciado triunfara na dura luta para penetrar na quase inexpugnável fortaleza onde o emprego está hoje aferrolhado a sete chaves e guardado por quatro ou mais dragões que vomitam fogo sobre quem deles se aproxima. O que importará talvez é repararmos no que o entrevistado narrou acerca de si próprio e reflectirmos um pouco sobre as suas palavras. Contou ele que se licenciara numa área para que se sentia muito vocacionado, de que “gostava”, como é de uso dizer-se, e pelo que se lhe ouviu é legítimo supor que a conclusão desse ambicionado curso lhe dera alguma alegria. Mas ele contou mais: disse ter-se dado conta de que concluíra um curso sem saídas para o mercado de emprego. E por isso optara por obter competências noutra área, conseguira-as, e presumivelmente com menor gosto do que inicialmente sonhara ter quando dos tempos de estudo e formação passasse aos tempos de labor profissional, escapara ao flagelo do desemprego.
3.Podemos assim depreender, e não sem razões, que aquela estória individual teve um final feliz. Talvez não inteiramente, mas um aparente sólido bom senso dir-nos-á que nos tempos que vão correndo não podemos ter enormes exigências. Ainda assim, porém, talvez se justifique que enquadremos este “happy end” num horizonte mais amplo e reflictamos um pouco. Aperceber-nos-emos então de que o caso narrado foi mais um caso concreto, entre muitos milhares, de cerceamento do direito à escolha de uma actividade profissional consequente a uma vocação, isto é, a uma apetência profunda, tornado de impossível consecução em resultado de um constrangimento imposto pelo mercado, na circunstância o mercado de trabalho. Ou por palavras mais simples e mais claras: é a força do mercado, da sua configuração frequentemente determinada por interesses privados, que impossibilitam de facto a plena realização individual. Pelo menos num certo grau, parece legítimo dizer que se está assim perante mais um crime cometido pelo mercado contra os direitos profundos do indivíduo, o que desmente a lenda de que é em inteira liberdade empresarial e mercantil que o indivíduo melhor se pode realizar. E não se diga com ligeireza que é excessivo o uso da palavra “crime”. Porque nem todos os crimes implicam que escorra sangue: às vezes só escorrem sonhos legítimos que foram estrangulados. E, em muitos desses casos, pode acabar apodrecida uma vida inteira.
Crime é a palavra cert(eir)a
4 comentários:
Direi mesmo mais: vale mesmo a pena ler...
Um abraço.
Sempre me faz lembrar Castrim.
Um abraço,
mário
Muito, muito bom.
Quantas vocações perdidas? Quanta frustração? Quanta perda parao País e o Povo?
Um beijo.
Correia da Fonseca sempre tao certeiro nas suas crónicas.Nao se pode deixar de lê-lo.
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