Ler Marx, ou ler sobre Marx, é tarefa inesgotável. Não se trata de ler as páginas todas de todos os livros publicados e manuscritos por publicar e ficar a saber o que elas ensinam, não se trata de ter tudo apre(e)ndido, porque elas só (!) ensinam a observar e a aprender com o que foi vivido e com o que está a ser vivido. E não para ficar a conhecer e a interpretar, mas para intervir com um sentido, para transformar. Para tomar partido.
Numa língua como a portuguesa, isso é muito mais evidente (para mim é…) que para quem tenha como sua língua, ou domine, o alemão, o inglês, o russo, o francês, até o italiano (foi nesta língua, que desconhecia e desconheço, que li Il Capitale há mais de 40 anos…). Porque cada página tem de ser reflectida... por vezes confrontando traduções que não coincidem a partir de um mesmo página (ou frase) original.
Toda a obra de Marx é dessacralizadora. Porque inacabada, encadeando-se, em permanente auto-avaliação e auto-correcção. E sempre incompleta apesar de haver quem se atreva a dizer que a leu toda, ou porque julgue que o fez por ter lido um resumo resumidíssimo de um resumo, ou porque seja incapaz de dizer que não leu mais do que algumas citações…
A releitura de Trabalho colectivo e trabalho produtivo…, de Jacques Nagels, suscita-me estas observações. Sobre questões definidoras na obra de Marx, Nagels procura ser exaustivo e estará perto de o ser. Cita e confronta Grundrisse (os Manuscritos de 1857-58), os três livros de O Capital, as Theorien (Théories sur la Plus-Value ou Histoire des doctines économiques), que são manuscritos de 1861-63 e que deveriam vir a ser a base, segundo indicações de Marx, do livro quarto, e ainda outros manuscritos.
O estudo da questão do trabalhador produtivo e do trabalhador colectivo, que nas edições avante!, 1992 – nos trechos que confrontei – se traduz por “operário total” (“operaio complessivo”, na edição Newton Compton Italiana, 1970), terá a maior importância, até porque o fulcro da análise na economia marxista é a produção, e esta, nos ciclos da actividade económica, em sistema de relações sociais que definem o capitalismo, localiza-se na esfera produtiva (…P…) e não nas fases de circulação (D-M e M’-D’), tendo a maior relevância a delimitação do trabalho produtivo, e não por mera questão semântica ou despicienda mas porque se liga à criação de valor e à unidade dialéctica valor de troca-valor de uso.
Nagels é peremptório: “todas as afirmações de Marx que se estendem sobre um período de vinte anos (1858-1878) concordam: nem um único átomo de valor é criado nas fases de circulação de capital” (p. 183). E é-o a partir de citações e sua reiteração reflectida, não como "argumento de autoridade" a que se submeta, e anota, nesse momento do aprofundado tratamento da questão, quatro aspectos que arriscadamente resumo i) a confusão entre as noções vizinhas mas distintas de função economicamente necessária e função produtiva; ii) a autonomia de uma função (comercial ou financeira) não lhe atribui carácter criador de valor; iii) a crescente importância e aumento de dimensão de uma função não torna produtivo o que, em análise marxista, se define como improdutivo; iv) não são as relações de produção que determinam a natureza produtiva ou improdutiva do trabalho (Marx em O Capital: “… (nada) autoriza a que se confunda os agentes da circulação com os da produção como não se confundem as funções de capital-mercadoria com as de capital produtivo”.
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Numa língua como a portuguesa, isso é muito mais evidente (para mim é…) que para quem tenha como sua língua, ou domine, o alemão, o inglês, o russo, o francês, até o italiano (foi nesta língua, que desconhecia e desconheço, que li Il Capitale há mais de 40 anos…). Porque cada página tem de ser reflectida... por vezes confrontando traduções que não coincidem a partir de um mesmo página (ou frase) original.
Toda a obra de Marx é dessacralizadora. Porque inacabada, encadeando-se, em permanente auto-avaliação e auto-correcção. E sempre incompleta apesar de haver quem se atreva a dizer que a leu toda, ou porque julgue que o fez por ter lido um resumo resumidíssimo de um resumo, ou porque seja incapaz de dizer que não leu mais do que algumas citações…
A releitura de Trabalho colectivo e trabalho produtivo…, de Jacques Nagels, suscita-me estas observações. Sobre questões definidoras na obra de Marx, Nagels procura ser exaustivo e estará perto de o ser. Cita e confronta Grundrisse (os Manuscritos de 1857-58), os três livros de O Capital, as Theorien (Théories sur la Plus-Value ou Histoire des doctines économiques), que são manuscritos de 1861-63 e que deveriam vir a ser a base, segundo indicações de Marx, do livro quarto, e ainda outros manuscritos.
O estudo da questão do trabalhador produtivo e do trabalhador colectivo, que nas edições avante!, 1992 – nos trechos que confrontei – se traduz por “operário total” (“operaio complessivo”, na edição Newton Compton Italiana, 1970), terá a maior importância, até porque o fulcro da análise na economia marxista é a produção, e esta, nos ciclos da actividade económica, em sistema de relações sociais que definem o capitalismo, localiza-se na esfera produtiva (…P…) e não nas fases de circulação (D-M e M’-D’), tendo a maior relevância a delimitação do trabalho produtivo, e não por mera questão semântica ou despicienda mas porque se liga à criação de valor e à unidade dialéctica valor de troca-valor de uso.
Nagels é peremptório: “todas as afirmações de Marx que se estendem sobre um período de vinte anos (1858-1878) concordam: nem um único átomo de valor é criado nas fases de circulação de capital” (p. 183). E é-o a partir de citações e sua reiteração reflectida, não como "argumento de autoridade" a que se submeta, e anota, nesse momento do aprofundado tratamento da questão, quatro aspectos que arriscadamente resumo i) a confusão entre as noções vizinhas mas distintas de função economicamente necessária e função produtiva; ii) a autonomia de uma função (comercial ou financeira) não lhe atribui carácter criador de valor; iii) a crescente importância e aumento de dimensão de uma função não torna produtivo o que, em análise marxista, se define como improdutivo; iv) não são as relações de produção que determinam a natureza produtiva ou improdutiva do trabalho (Marx em O Capital: “… (nada) autoriza a que se confunda os agentes da circulação com os da produção como não se confundem as funções de capital-mercadoria com as de capital produtivo”.
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Tanto pano para tantas mangas e... o que interessa isto para a tomada de partido?
(continua… talvez também aqui)
7 comentários:
Interesa muito. Interessa para que se compreenda o valor do trabalho produtivo em todas as suas vertentes e para que se veja a apropriação do seu real valor pelos sistemas ecomómicos e financeiros. Mas lá que é difícil, é.
Ando a tentar dar uma base mais científica à minha tomada de partido, através da leitura dos teus "post" porque sincera e consciente ela é.
Um beijo.
Continua que estás a agradar.
Interessa e muito para a tomada de consciência, para a tomada de Partido, aquele que é o nosso, Camarada!
Aqui, muito tenho apre(e)ndido. Obrigado.
Um abraço desde Vila do Conde.
Jorge Gomes
Acho que interessa. E muito. E espero continuar a ler-te...
Beijo.
Por mim podes continuar.
Um abraço.
Eu confesso que não tenho tão boa impressão desse livro do Nagels como isso, embora reconheça que foi um acontecimento importante a sua publicação em português.
Também acho que o Nagels procurou, na medida dos seus conhecimentos linguísticos (lamentava não saber japonês) e das fontes a que tinha acesso, ser exaustivo. Mas, ao contrário do Sérgio, acho que está muito longe de o ser.
No entanto, a minha principal objecção é que, numa questão verdadeiramente central - a da produtividade (de mais-valia) dos serviços organizados de modo capitalista -, o livro é uma grande desilusão e, num certo sentido, quase "fraudulento" (ponho entre aspas e peço antecipadamente desculpa por usar um termo tão forte em relação a um autor de que nem minimamente ponho em causa a sua probidade intelectual).
Porquê? Porque nesta questão da produtividade da esfera dos serviços, que é a questão verdadeiramente difícil, passa o livro todo, os dois tomos do livro, a adiá-la para depois achar que se descarta dela em uma ou duas páginas no final.
Isto é, nas questões fáceis, o autor espraia-se por aí fora, confronta tediosamente os textos todos, procede à exegese linha a linha dos textos do Marx, enfim, como diria o Sérgio, é quase exaustivo, mas na questão verdadeiramente difícil vai sempre adiando e passa por ela como gato sobre brasas no final.
Ainda por cima achando que a "resolve" (invocando muito brevemente a argumentação de um economista marxista japonês).
Acrescento apenas que, em meu entender, mas essa é uma discussão difícil de ter neste breve comentário, a "solução", de considerar apenas produtivo (de valor, de mais-valia) o trabalho assalariado nas esferas da produção material, é errada.
Seja como for, o que o leitor gostaria é de, já que tantas vezes se protela a resolução do problema, ao menos que se lhe dedicasse um esforço argumentativo, já não diria igual, mas pelo menos de um décimo do despendido nas questões fáceis.
Grandes divergências à parte, reitero que o livro é útil, que o autor é honesto, peço novamente desculpa da minha adjectivação desproporcionada, e saúdo o Sérgio pelo papel que, nos idos de 70, teve na divulgação desta obra na nossa língua.
HM
Camarada Graciete - Obrigado pelo estímulo
Antuã - Comenta que estás a agradar...
Jorge Manuel G - Obrigado pelo estímulo... e pelo abraço.
Maria - ... cá vou escrevendo.
Fernando Samuel - Obrigadinho.
Grande abraço
HM (não consigo localizar mas não o tomo por anónimo!) - Obrigado pelo comentário. Assim apetece conversar... A minha "boa impressão" do livro do Nagels não resulta de ele ter sido quase exaustivo; poderia tê-lo sido (ou quase), e ter-me deixado "má impressão".
Considero o livro de enorme utilidade por trazer para a discussão (que ainda não começou...) o conceito de trabalho colectivo.
Quanto à questão do que diz ser a «produtividade (de mais-valia) dos serviços organizados de modo capitalista» não a reconheço como «questão verdadadeiramente central», e menos ainda nessa sua formulação.
Questão central considero a do (e onde, em que esferas do circuito) conceito de trabalho produtivo, e ligada ao "valor e à "criação de valor".
Mas fico-me por aqui, embora a conversa possa vir a ser retomada se e quando...
Saudações para todos
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