SEM SOMBRA DE RECATO
1. Esperava-se, é certo, que mais dia menos dia o governo anunciasse o assassínio da Radiotelevisão Portuguesa, operadora pública de TV. Porque esse crime, desde há muito sonhado pela direita portuguesa mais ortodoxa e também mais negocista, estava inscrito como destino nas invisíveis linhas programáticas que a comandam. O que não se esperaria era que o momento inicial dessa operação fosse duplamente marcado por uma provocação política e por um projecto de óbvio prejuízo financeiro em benefício de uma (ainda) não identificada entidade privada. Uma provocação política: a desastrada alienação de um importantíssimo fragmento do sector estatal é anunciada por um cavalheiro de estranho percurso que não integra o governo, sendo a sua comunicação feita sob a forma de entrevista dada a um dos dois canais privados que são concorrenciais da estação pública. A coisa foi de tal modo escandalosa, e mesmo chocante, que até motivou público desacordo expresso por mais de um dirigente do CDS-PP, partido da coligação sem a qual o governo PSD seria minoritário. Projecto financeiramente desastroso: não apenas prevê que o Estado entregue a uma empresa privada o seu canal principal (ou a licença que permite viabilizá-lo, o que obviamente é o mesmo) mas também que a essa generosa oferta ainda acrescente a dádiva anual de 140 milhões de euros, desse modo garantindo desde logo a rendibilidade do negócio. Embora sendo certo que das práticas do actual governo já não são expectáveis elevados níveis de pudor, a total falta de recato que caracteriza esta iniciativa, quer na forma como surgiu perante o País quer no conteúdo anunciado, marca uma espécie de recorde da desvergonha que não parece de ultrapassagem fácil.
2. É claro que esta privatização, efectiva ainda que eventualmente mascarada de concessão por prazo fixo mas decerto renovável enquanto isso convier aos interesses privados, poderia ser apenas mais uma no quadro da pilhagem sistemática do património público que está a ser realizada pelo governo Passos Coelho. Só que esta é a entrega aos interesses privados, comerciais e financeiros mas inevitavelmente também alguns de outra natureza, do que melhor ou pior ainda subsiste como televisão estatal portuguesa. Para cúmulo, o projecto anunciado inclui a liquidação sumária do canal que com maior ou menor razão ainda mantinha a reputação de ter funções culturalizantes, e este requinte elimina eventuais dúvidas quanto à presença de raízes obscurantistas na construção de mais esta “reforma estrutural”: em verdade, o conhecido desabafo atribuído a Goebbels que relaciona a audição da palavra “cultura” ao gesto assassino de empunhar uma pistola prossegue, pelas décadas fora, a reproduzir-se ainda que sob diferentes formas. Quanto a este ponto, ainda será útil que recordemos quanto a televisão esteve, nos seus tempos iniciais e não apenas em Portugal (onde, de resto, a ditadura fascista coarctava obviamente os horizontes possíveis), relacionada com expectativas de ampla difusão cultural. E parece inteiramente plausível, se não ainda mais que isso, que o velho ódio privado contra a televisão pública, radicado sem dúvida na gula sempre insaciada pelos proveitos financeiros, radique também na memória da ameaça cultural que uma TV estatal, eventualmente fiel à sua mítica trilogia de funções (“informar, cultivar, distrair”, por esta ordem), possa ter constituído um dia para a militância do analfabetismo cultural. Parecendo ocioso recordar que essa militância é, através dos tempos, uma característica permanente de todas as direitas políticas.
3.Os próximos dias ou semanas talvez nos esclareçam acerca do verdadeiro sentido estratégico da lamentável presença na TVI do dr.António Borges, espécie de ministro sem pasta mas também de mitigado prestígio, pois nunca ficou bem esclarecido o motivo da brevidade da sua passagem pelo FMI. Não é inverosímil que esta sua vinda tenha correspondido ao lançamento de um balão de ensaio associado ao desejo de poupar mais uma vez o ministro Relvas a prováveis efeitos de erosão que o projecto revelado suscitaria. É claro, porém, que o projecto é obra de responsabilidade colectiva, digamos que compatível com uma acção de bando. Talvez por isso o CDS se apressou a vir demarcar-se da feia acção. Esperemos, ainda que não com exageradas esperanças, que o indignado clamor que se elevou nos mais variados sectores possa travar a intenção celerada. No todo ou em parte. Até que, um dia, o Estado português possa recuperar plenamente a sua/nossa televisão e utilizá-la em favor do povo que a paga.
nem mais!
nem menos!
1 comentário:
Em cheio!
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