No Público de hoje:
OPINIÃO
Luís Reis Torgal
Este mundo da (des)informação
e dos falsos combates!
História e memória
22 de Junho de 2020
Não sei se por cá há mais ou menos racismo do que noutros países, mas o que
importa é contribuir de forma autêntica, e não através de falsos combates, para
que ele desapareça, em todas as formas que subsiste. E são muitas, com certeza.
Em 1989 escrevi um livro
intitulado História e Ideologia, com base em textos que havia
publicado ao longo de vários anos. Tentei mostrar que uma coisa é a História
como ciência, que procura objectivamente interpretar de todos os ângulos e com
todas as fontes possíveis o que se passou e vai passando, e outra a Memória que
vai surgindo, mais ou menos espontaneamente ou em função de ideologias
organizadas, e cuja “legitimidade histórica” (para empregar uma expressão de
Marc Ferro) vai variando à medida que se altera a visão do mundo. Daí mudarem
as interpretações dos factos ou os nomes das ruas, de praças, pontes ou
instituições, surgirem e derrubarem-se estátuas…
O que hoje é digno de glorificação,
amanhã não será. O que hoje é esquecido, amanhã pode ser louvado. Neste mundo
de (des)informação — devido por vezes ao excesso de informação superficial —
basta dizer para crer. Assim, surgem nos periódicos e nas redes sociais — a par
de textos de jornalistas, de historiadores e de outra gente da escrita, feitos
com muita serenidade — artigos e opiniões que enchem de crenças ou de dúvidas
quem os lê, sem se procurar saber até onde chegou o conhecimento histórico da
realidade.
O homicídio do afro-americano George Floyd pela
polícia de Mineápolis desencadeou uma onda de legítimo anti-racismo que devia
ser controlado pela posição correcta e objectiva dos poderes políticos, da
ciência e da civilidade, e não aproveitado abusivamente por ideologias. E o
certo é que esse
anti-racismo militante, por vezes tão primário como o próprio racismo, extravasa
o universo em que se formou, atingindo vários países, inclusivamente Portugal,
onde cada um se esforça por dizer o que pensa e o que sente, sem analisar calma
e profundamente os factos. Assim, chegou-se a atentar contra a estátua (com
certeza de uma estética mais que discutível) de um dos nossos maiores
escritores e oradores e homem de rara coragem cívica, o Padre António Vieira, sem que alguma vez se
tentasse perguntar a alguém que estude cientificamente história da cultura e
história política o que se pode concluir do pensamento e da prática deste jesuíta do
século XVII.
O que parece a alguns ser prioritário é vandalizar, como se estivéssemos no
tempo dos iconoclastas que, de resto, aparecem em todas as épocas e com todas
as ideologias, motivados não por ideias bem assentes mas por paixões
incontroláveis. Qualquer estudioso de Vieira saberia dizer que este lutou pelos
índios, pelos cristãos-novos e pelos judeus, mas não se encontrava ainda na
época própria para defender com o mesmo denodo os negros escravos do Brasil,
embora em seus sermões, nas igrejas do Rosário dos Pretos, aludisse à forma
desumana com que eram tratados pelos colonos, com quem teve pugnas constantes,
tentando mostrar a esses infelizes que ao menos eram senhores da sua alma que —
como era próprio da crença católica do tempo — seria salva pela sua fé. Só por
isso se deve vandalizar as estátuas de Vieira? E como é que isso contribui para a luta contra o racismo,
que deve ser uma ideia e uma prática firmes, assumidas diariamente, assim como
a luta pelo humanismo, em geral esquecida neste mundo de concorrência e de
consumismo? Se tal sucedesse, há muito teríamos mais negros, ciganos e
gente de todas as etnias nas escolas, como alunos e professores, nas profissões
mais bem pagas, nos parlamentos ou nos governos, e menos a viver nos novos
“bairros da lata”, onde se desenvolvem situações de violência, que a polícia
deveria, em regra, saber controlar (o que por vezes consegue), se tivesse meios e preparação para o
fazer.
A nossa forma de alterar o cenário político e social — em Portugal e em
outros países — foi, em certos casos, meramente formal e em resultado das
paixões do momento. Assim, por exemplo, criaram-se, mudaram-se ou apagaram-se
nomes, construíram-se e derrubaram-se estátuas e outros símbolos de memória,
sem muitas vezes saber porquê, em lugar de se assumir a História e tentar por
meios estruturais alterar a ordem das coisas. Seria este — a meu ver — o modo
mais certo de não apagar a História (ou a Memória, como por vezes se diz) e de
tentar mudá-la para melhor, em benefício de todos os homens.
Não volto a discutir assuntos que já estão gastos sem verdadeiramente se
terem debatido. Mas recordo ainda uma experiência pessoal e deixo uma breve
consideração de ordem científica e cultural.
Há algum tempo perguntaram-me se a minha Universidade deveria retirar o
título de doutor honoris causa a Francisco Franco, que lhe foi
concedido em 1949, tal como fez a Universidade Santiago de Compostela. A minha
resposta imediata foi “não”, pois a História não se apaga, mas explica-se e
compreende-se criticamente. O mesmo terá considerado a Universidade de Oxford,
que em 1941 concedeu o título a Salazar. E, quanto à questão fundamental do
racismo, julgo que Portugal,
como país que teve um “Império Colonial” até 1974 (com uma falsa tentativa
desesperada para alterar legalmente o seu estatuto, sobretudo a partir dos anos
50 e 60, sem com isso deixar de sentir uma guerra que se prolongou por mais de
uma década), deveria contribuir — dando colaboração aos investigadores
autóctones — com os seus historiadores, os seus antropólogos, os seus
sociólogos… para melhor conhecer a realidade dos países de língua oficial
portuguesa, quer na sua perspectiva colonial, quer na perspectiva
anticolonialista. É que sem isso não será possível conhecer a sua história de
hoje, cheia de contradições e dificuldades. E essa realidade não se conhece
apenas nas bibliotecas e arquivos, mas nos próprios espaços, no íntimo da
complexidade das suas geografias, das suas sociedades e das suas culturas.
Também assim se conheceriam melhor os seus exilados ou aqueles que, vindos de
África, como de outros continentes, escolheram Portugal para viver.
Não sei se por cá há mais ou
menos racismo do que noutros países — houve seguramente (a meu ver)
menos anti-semitismo, depois de derrubado o monstro da Inquisição —, mas o
que importa é contribuir de forma autêntica, e não através de falsos combates,
para que ele desapareça, em todas as formas que subsiste. E são muitas, com
certeza.
Professor catedrático aposentado da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, fundador do CEIS20