O MEDO E O ÓDIO
1. Já há vários meses que pela voz inconfundível do ministro Relvas o governo anunciara a sua decisão de assassinar o serviço público de televisão. Na altura, disse da intenção de privatizar um ou mais canais e de esfrangalhar o que restasse, acrescentando que o crime seria perpetrado até ao fim do ano em curso. A menos de um mês do final do ano, ainda não se sabe o que vai acontecer ao que está longe de ser uma empresa qualquer: não se trata apenas de a RTP ser património público, isto é, de todos os portugueses, mas também e sobretudo de se tratar da mais relevante fonte de informação e formação da população. O facto de a Radiotelevisão Portuguesa cumprir muito mediocremente as tarefas que lhe cumprem não pode constituir pretexto para a sua destruição, muito pelo contrário. E convirá apercebermo-nos de que mesmo assim, medíocre e insuficiente, a operadora pública de TV sempre constituiu, ao longo dos seus anos, uma possibilidade para que um dia deixasse de ser assim e fosse colocada ao serviço útil e necessário do país, isto é, informando com verdade, estimulando a apetência por diversas formas de fruição cultural e fornecendo tempos de entretenimento inteligentes e saudáveis.
2. Foi aliás sob o signo desta trilogia – informar, cultivar, divertir – enunciada mesmo quando não fielmente cumprida na prática concreta, que a televisão nasceu e alastrou. Por isso mesmo, porém, desde sempre despertou medos e suscitou manobras que a pervertessem. Ao que consta, Salazar sempre encarou a instalação da TV em Portugal como um nada desejável risco a evitar quanto possível. Entende-se. Num país “orgulhosamente só”, poderia haver o risco de a televisão mostrar um mundo diferente, aberto a aragens que se tornassem nocivas para o que Torga um dia chamou de “borralheira de estufa calafetada”. É claro que o ditador dispunha de diversas formas de mordaça, desde a censura até à meticulosa filtragem de profissionais, passando pela polícia política. Mas nem essa panóplia terá descansado o homem até que, um dia, teve de capitular e Portugal passou a ter televisão: uma televisão vigiadíssima, castrada, tanto quanto possível inócua. Mas não totalmente. É que, nesses anos distantes, ainda por todo o mundo e sobretudo na Europa a televisão mantinha alguma fidelidade à trilogia que lhe dava sentido e informava, e cultivava, e divertia, sempre com um aceitável nível de qualidade em qualquer destes sectores. Pelo que a TV portuguesa, embora presa do fascismo e seu instrumento, estava obrigada a minimamente seguir o itinerário que as suas congéneres trilhavam.
3. De então para cá, muita coisa mudou, como é bem sabido, mas sempre as forças repressoras mantiveram sobre a TV um olhar vigilante e tendencialmente amedrontado. Porque elas sempre souberam que a televisão pode ensinar coisas às populações que as classes dominantes preferem ignorantes, enredadas em imposturas várias, manipuláveis e obedientes. De facto, a televisão tornou-se um elemento de eventual risco, ou pelo menos de possível dificuldade, para a tarefa infame da exploração das gentes e não apenas no mero plano económico. É que a exploração dos homens por outros homens integra também a área da cultura: os explorados são também objecto de continuadas acções que visam o seu empobrecimento cultural. Para maior sossego dos dominadores, naturalmente. Aqui radica o medo que a televisão sempre inspira, em maior ou menor grau, aos exploradores que, coerentemente, se aplicam a desviar a TV do seu natural destino de fornecedora de sabenças e de favorecedora do entendimento das coisas em droga analgésica, mistificadora e tendencialmente cretinizante. E, é claro, para execução dessa tarefa foi encontrado o caminho mais adequado e eficaz: a entrega da televisão a grupos financeiros privados.
4. Como sempre acontece, também aqui o medo se transformou em ódio, e essa transformação qualitativa visibilizou-se no caso português não apenas com as muitas vozes hostis que contra ela se fizeram ouvir ao longo de décadas, mas também e sobretudo com sucessivas decisões que visaram com larga porção de êxito transformar a RTP numa espécie de TV comercial com raros momentos de efectivo serviço público quase sempre transmitidos de modo a terem escassas audiências. Basta lembrar a diferença entre a qualidade intelectual e cultural de figuras que foram directores de programas na RTP nos tempos que se seguiram a Abril (Artur Ramos, Manuel Ferreira, Manuel Jorge Veloso, Mário Dionísio, Augusto Abelaira) e a dos que se lhes seguiram para que não tenhamos dúvidas quanto a essa triste e de facto criminosa evolução imposta.
O anúncio recente da extinção de “Câmara Clara”, o programa que na “2” era uma espécie de sobrevivente isolada na execução de uma TV empenhada na informação cultural e na conquista de cidadãos interessados na cultura, não parece ser mais que um exemplo concreto desse medo e desse ódio que não se extinguem no ânimo das classes dominantes e dos executantes dos seus desejos. Neste caso, nem cuidaram de esperar pela anunciada “remodelação” da televisão pública portuguesa. Há rancores que nem sequer sabem esperar um pouco.
Alentejo Popular
(on-line)
3 comentários:
Em cheio!
Grande verdade!
Bjo
Os néscios são assim.
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