segunda-feira, outubro 28, 2013

Um problema de consciência - intervenção no Congresso Álvaro Cunhal

























[Ainda invadido pela ocupação de rotundas e cruzamentos de caminhos, mais força encontro neste cartaz: Marx, de ceroulas, a cortar as unhas dos pés!

Independentemente das intenções dos autores (que nem seriam das melhores!) é o ser humano na sua plenitude… de Humanidade a solo. A dizer-nos quanto tudo é efémero e pode, ao mesmo tempo ou no tempo histórico, ser perene.
 Que tem isto a ver com Álvaro Cunhal?]
 estes parágrafos - e as gravuras, oviamente - não foram lidos

UM PROBLEMA DE CONSCIÊNCIA

O centenário de Álvaro Cunhal é a celebração do efémero, de que importa reter o perene, os seus exemplos deixados no tempo por ele vivido.
Na ida juventude nossa, confrontámos a questão deletéria do “jovem Marx”, o bom, o filósofo, versus “Marx velho”, o barbudo, economista e mau, e não espantará que essa questão se transponha para a distinção entre o Cunhal jovem e bom e o Cunhal adulto e mau, entre o Cunhal simpático e artista e o Cunhal frio e… soviético.
Neste brevíssimo aponta-mentes, queria deixar a impressão da marca da sua juventude e formação e como ele a ela foi coerente, o que a releitura dos tomos I e II das Obras Escolhidas me tocou muito fundo e a exigir comunicação.
Como a carta do Marx – com 17 anos… –  ao pai, alguns textos e cartas de Cunhal jovem me parecem imprescindíveis para se ter, em toda a sua dimensão, a força da sua personalidade total, a riqueza humana de que imbuiu a sua vida e no-la doou, com a simplicidade de ser – apenas! – um de nós, elo único e insubstituível, como cada um no seu tempo histórico.
A aparente minudência de, aos 20 anos, em vez de dizer não quero, afirmar quero não é uma forma clara de traduzir o primado da vontade consciente, mas de uma vontade que se sabe condicionada, não livre, que tem um contexto social;
também as cartas (como a Abel Salazar), os artigos (o verdadeiramente didáctico ”Um problema de consciência”), as polémicas (com José Régio, por exemplos) são ilustrações de primeiros passos num caminho certo e determinado de quem (como ele disse) “não sabe onde acaba a audácia e começa o risco” e que, por ser audaz, correu riscos.
E porque correu todos os riscos, e porque a eles foi sobrevivendo, nos deu as lições de como o trabalho pode salvar. A leitura, no Tomo II, do que ficou escrito do período de isolamento na Penitenciária, nos requerimentos, protestos, reclamações – sempre de uma correcção e ironia inexcedíveis perante aqueles que ele colocava, já então e assim, como réus – valem o que decantada ficção está longe de merecer.
É o mesmo Álvaro Cunhal que, em 1939, questionando-se sobre a felicidade, escreve que esta “não pode existir, não existe, como situação particular”, que “só pode existir como um atributo de toda uma vida (…) quando não nos sentimos meros joguetes da evolução mas, pelo contrário, sentimos que, mesmo ao de leve, as nossas energias modificam o seu ritmo. Quando sabemos ser leais, rectos e solidários”.
É o mesmo Cunhal que é decisivo na reorganização do Partido nos anos 40,
que, no pós-guerra, no colectivo que sempre privilegiou, modifica o ritmo dos acontecimentos,
que, após a fuga de Peniche, contribui para a correcção do desvio de direita e para o rumo à vitória e a Abril.
É o mesmo Álvaro Cunhal que, sempre encarando as condições diferentes a partir do seu “problema de consciência” e escorado na base teórica que vai confrontando com a realidade, é o retrato da vanguarda do povo em luta durante o empolgante período de conquistas revolucionárias.
Como é o mesmo camarada Álvaro que, nos anos 80 e 90, resiste à recuperação e vindicta capitalista a inverter a evolução da correlação de forças, resistência ideológica que afirmou, no colectivo e como colectivo, quando tantos e por tanto lado, negavam e se negavam.

Por fim, é o mesmo Álvaro Cunhal que cumpre o que escrevera quase 70 anos antes: “até o estertor final pode conduzir à felicidade pela convicção de que se morre bem” e, para isso, forjou “o desinteresse pessoal por prazeres efémeros, a rijeza de aço para lutar, o esclarecimento das exigências dos sentidos (…) Podem as leis da natureza esfrangalhar o corpo. Podem os orgãos começar cansando. (…) O corpo começar em vida o seu desagregamento. Poderá bailar ante os olhos a perspectiva da morte e o fim especar-se num amanhã irremissível”
Mas… “haverá sempre vontade de continuar, procedendo sempre e sempre duma forma escolhida, marchando sempre para um destino humano e uma missão terrena voluntariamente traçada. Haverá sempre anseio de continuidade e aperfeiçoamento.(…)”
Assim nos dizia o Mestre, antes de Mestre ser, apesar de não esperar ou de não pretender que a designação a si se aplicasse. Mas Álvaro Cunhal bem a merece.

Álvaro Cunhal bem merece o adjectivo de Mestre a partir da definição que ele próprio faz, cristalinamente, em O Partido com paredes de vidro, ao referir-se a Lenine:
“O Mestre é o ensinamento da verdade da vida, na sua evolução, nas suas mudanças, no seu constante desenvolvimento, na sua relatividade” por oposição ao que seria Deus e os cultos – ”Deus é o dogma, o Mestre a verdade dialéctica”.
Insiste-se, para esgotar os escassos 5 minutos, na questão da verdade.
Toda a vida de Álvaro Cunhal a exemplifica perenemente. Se muitos textos e títulos se poderiam escolher da bibliografia que deixou, em obra teórica, de intervenção política, de ficção e ensaio, estima-se ajustada a referência a A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, de cujo estudo se sai com a consciência colectiva limpa, arejada, e com o sentimento de reforço do que é perene e, beneficiando desta efeméride, do centenário de um Mestre, com mais vontade de lutar, com os outros, com as massas, pelo futuro. Ainda que, embora nosso, nele não estejamos.

10 comentários:

Luís Neves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Luís Neves disse...

Esta intervenção está disponível em vídeo no blogue do 2013 – Centenário de Álvaro Cunhal
Um abraço à volta das tuas sábias palavras

Justine disse...

Muito bom! Bem escolhido e bem escrito!

José Rodrigues disse...

Quando a tristeza me invade...vou reler o "Problema de consciência"para ganhar fôlego.Muito bem camarada!


Abraço

samuel disse...

Bem esgalhado... para além de estar muito bonito, o que não é de somenos importância!

Abraço.

Antuã disse...


Há quem perdure para além da morte.

Olinda disse...

Extraordinârio comentârio para expressar o pensamento polîtico de Âlvaro Cunhal.O que eu devo ao autor deste blog,pela fôrmula encontrada de me mostrar que estou no partido certo.

Um beijo de agradecimento



GR disse...

“Quando sabemos ser leais, rectos e solidários”.
Hoje em dia estes adjectivos, tão fáceis de pronunciar, são cada vez mais difíceis de praticar.
Camarada Sérgio, fizeste uma excelente intervenção que pode ser ouvida onde Luís Neves indica e vale mesmo a pena, aprendemos mais e ficamos mais fortes para a Luta.

Gd BJ,

GR

Anónimo disse...

Muito bem camarada Sérgio. Esta tua intervenção é excelente. Não consegues esconder que foste, e és um grande mestre/professor. Os teus "sublinhados/comentários" são muito importantes porque reforçam a importância intelectual e política do camarada A. Cunhal.

Um abraço.
João Filipe

Graciete Rietsch disse...

Intervenção excelente e tão bonita!!!
Cheia de força e confiança que o Mestre merecia inteiramente.
Não pude ir ao Congresso, mas espero ir ao Comício no dia 10/11.

Um beijo.