Em
Jorge Seabra faz um balanço (ou revisão de matéria dada) de grande oportunidade:
Votar na
Saúde
Jorge
Seabra
SEXTA, 05 DE
JULHO DE 2019
Com as piruetas do Governo, quem quiser
defender um SNS universal, geral e gratuito, sem PPP nem taxas moderadoras ou
outras habilidades privatizadoras do género, não terá no PS uma aposta segura.
Embalados pela esperança criada com a formação de um
governo PS viabilizado pelo PCP e pelo BE para quebrar o velho «arco do poder»,
António Arnaut, ex-ministro histórico do PS, e João Semedo, ex-líder do BE,
lançaram-se na luta pela salvação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), corroído
por décadas de subfinanciamento e desestruturação causados por políticas
governamentais favorecedoras dos grandes interesses privados.
A 6 de Janeiro de 2018, o livro Salvar o SNS,
dos dois autores, com a proposta de uma nova Lei de Bases da Saúde (LBS) que
procurava recuperar o seu espírito original, foi lançado com pompa e
circunstância na bela e enorme capela do Convento de São Francisco, em Coimbra.
A presença do primeiro-ministro, António Costa, e do
ministro da Saúde, Adalberto Fernandes, rodeados por uma numerosa assistência
onde curiosamente se juntavam «salvadores» e «agressores» do SNS reunidos num
clima de aparente unidade, deixava, desde logo, uma marca de ambiguidade na
iniciativa.
Aos discursos de ocasião, de que se destacou o de
Manuel Alegre, a voz habitualmente usada pelo PS quando quer dar umas pincelas
de vermelho no seu quotidiano, juntou-se a palavra artificialmente roufenha de
João Semedo, já muito doente, que, com a ausência de Arnaut, igualmente
afectado por graves problemas de saúde, acrescentaram um dramático tom de
derradeira despedida das duas emblemáticas figuras da defesa do SNS.
Foi desta forma emotiva que foi posta na ordem do dia
a revisão da Lei de Bases da Saúde de 1990, aprovada nos tempos do Governo de
Durão Barroso só com os votos do PSD e CDS, escancarando as portas à
privatização da Saúde.
Aparentemente, a maioria de deputados PS, PCP e BE que
tinham viabilizado o Governo minoritário PS era suficiente para reverter esse
processo. Mas, como desde logo alguns avisaram (entre eles o PCP),
independentemente da bondade do objectivo, contar com essa soma aritmética e a
morte da direita dos interesses e da sua influência no PS talvez fosse,
manifestamente um exagero, como diria Mark Twain.
Na realidade, business is business, como
diz a canção dos rappers Lil Baby e Guma que se começou a ouvir na altura. E a
pergunta punha-se: a abertura da direcção do PS a um acordo à
esquerda (até aí sempre recusado) seria por finalmente ter decidido tirar
um pouco de socialismo da gaveta, ou por se ter sentido à beira do abismo caso
se associasse a mais um governo austeritário de Passos e Portas, adivinhando um
definhar até à insignificância como acontecera aos seus irmãos da Grécia e de
França?
Uma política na continuidade, com
tímidas reversões
A verdade é que a política do governo de Costa e do
ministro Adalberto Fernandes, embora com tímidas reversões, estava longe de
apontar para uma substancial mudança à esquerda. Muito pelo contrário. Apesar
de algumas mudanças pontuais nas contratações e na limitação dos abusos mais
flagrantes das taxas moderadoras, a vontade de continuar as parcerias
público-privadas (PPP) e a gestão «empresarial» no SNS, com contratos de
empresas de trabalho à tarefa e a exportação de listas de espera para o sector
privado, manteve-se num crescendo, para além de outras decisões incoerentes ou
num sentido errado.
Procurando três exemplos de importância
diversa mas representativos dessa política, podemos referir a proibição de
reuniões e jornadas científicas em instalações do SNS quando apoiadas por
empresas farmacêuticas (o que, face à completa ausência de apoios estatais,
apenas se compreende como uma medida populista e pseudomoralista de apoio à
hotelaria, para onde se tiveram de deslocar esses eventos aumentando os seus
custos), o inaceitável atraso no concurso para integração de jovens
especialistas no SNS, fazendo com que muitos fossem para a privada ou
emigrassem, e a criação e regulamentação de «centros de responsabilidade» no
interior dos serviços hospitalares, promovendo, no melhor espírito de
fragmentação «empresarial», grupos autónomos de médicos, enfermeiros e
administradores que, actuando de forma independente, contratam com a
administração por três anos o tratamento de doentes em lista de espera.
Claro que a
nada disto a Lei de Bases de 1990 obrigava, como também, embora má, não
obrigava à maior parte das malfeitorias feitas ao longo das décadas em que o
«arco do poder» do PS, PSD e CDS governou. Nem sequer às PPP que Correia de
Campos liberalmente implementou e Adalberto Fernandes fez os possíveis por
manter, tendo prolongado sem concurso a de Cascais e só não tendo feito o mesmo
à de Braga porque a concessionária Mello Saúde (CUF) exigiu mais, tornando o
expediente inexequível.
«Foi nessa continuidade [a vontade de continuar as PPP
e a gestão «empresarial» no SNS] que o governo decidiu nomear uma comissão para
estudo da nova Lei de Bases presidida por outra sua ex-ministra e assessora da
Luz-Saúde, Maria de Belém, que teve como particularidade não integrar nenhum
médico ou profissional do SNS»
Foi nessa continuidade que o governo decidiu nomear
uma comissão para estudo da nova Lei de Bases presidida por outra sua
ex-ministra e assessora da Luz Saúde, Maria de Belém, que teve como particularidade
não integrar nenhum médico ou profissional do SNS. O resultado, já possível de
prever, foi um texto que, por entre curvas e cotovelos de conceitos mais ou
menos humanistas, defendia a continuação dos apoios aos grandes grupos
privados, funcionando como um mero aggiornamento da LBS de
1990, o que logo levantou uma onda de protestos.
Enquanto aparentemente se travava a apregoada luta
entre o «PS de esquerda» e o «PS de direita» – considerada, por alguns, como
uma decisiva confrontação do PS com a sua verdadeira identidade e com a
«herança de Arnaut» –, Costa, vendo aproximar-se as eleições, considerou
oportuno fazer um outro aggiornamento, agora do próprio ministério:
saiu o ministro Adalberto Fernandes, já demasiado desgastado e identificado com
a direita, entrou Marta Temido, uma cara jovem que ganha os seus primeiros
galões de gauche ao atirar o famigerado relatório Belém para o
lixo.
A experiência mostra, contudo, que é sempre bom não
personalizar demasiado as políticas ministeriais, que raramente têm alguma
independência do colectivo governamental e do primeiro-ministro.
«A personalização pode também dar jeito para
desresponsabilizar o governo e fazer “reset” das medidas mais impopulares.
[Foi] Ana Jorge, prestigiada pediatra e conhecida como defensora do SNS, que,
defraudando as melhores expectativas, acabou com o regime de dedicação
exclusiva nas Carreiras Médicas, um dos pilares do serviço público que se
esperava vir a ser consolidado»
A personalização pode também dar jeito para
desresponsabilizar o governo e fazer reset das medidas mais
impopulares.
Recordemos a esse propósito que, na parte final do
primeiro mandato de Sócrates, o Ministro Correia de Campos, depois de ter
fechado Urgências, Serviços de Atendimento Permanente (SAP) e Maternidades, com
o Zé Povinho na rua a protestar, viu-se substituído por Ana Jorge, prestigiada
pediatra e conhecida como defensora do SNS que, defraudando as melhores
expectativas, acabou com o regime de dedicação exclusiva nas Carreiras Médicas,
um dos pilares do serviço público que se esperava vir a ser consolidado.
Para quem conhece minimamente a forma e o âmbito de
uma Lei de Bases, percebe-se que ela só verdadeiramente se define nas
fronteiras que traça sem ambiguidades, nas linhas vermelhas que criam proibições
sem janelas ou frinchas por onde se possam esgueirar leis avulsas ou práticas
contrárias.
Expressões difusas no significado ou no tempo como «a
gestão dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde é pública podendo
ser supletiva e temporariamente assegurada por contrato com entidades privadas
ou do sector social» só representarão avanços se substituídas por outras mais
simples e incontornáveis como «os serviços e estabelecimentos do SNS não podem
ser geridos por entidades privadas ou do sector social».
«Ela (a Lei de Bases) que afirme, em termos
emblemáticos, a supremacia do sector público! (…) Eu estou-me nas tintas para
que o PS ponha lá na lei uma espécie de slogans que lavem a consciência e
honrem lá a memória de uns militantes...» ANTÓNIO LOBO XAVIER, NA CIRCULATURA DO QUADRADO
Quanto ao resto, uma pincelada de esquerda pode até
ser de bom tom nos princípios introdutórios, como disse Lobo Xavier, o
comentador mais à direita na Circulatura do Quadrado da SIC, desde que, como
referiu, seja como o «caminho para o socialismo», ainda presente na
Constituição mas que, na prática, não significa nada.
«Ela [a Lei de Bases] que afirme, em termos
emblemáticos, a supremacia do sector público! […] Eu estou-me nas tintas para
que o PS ponha lá na lei uma espécie de slogans que lavem a
consciência e honrem lá a memória de uns militantes…», concede Lobo Xavier. O
importante, acrescenta, é que a lei assegure «o melhor para as pessoas» o que,
no parecer do «pragmático» advogado dos grandes negócios, é manter ou até
aumentar o número de PPP e a progressiva privatização dos cuidados de Saúde.
Com alguns enunciados que aparentavam apontar para o
caminho certo, a negociação da Lei de Bases da Saúde com o PCP e o BE acabou
por parecer ultrapassar esses slogans para «lavar a
consciência» e chegar-se mais à esquerda, com o governo a apresentar uma
proposta em que aceitava o fim da gestão privada das unidades do SNS.
Que a referida proposta não era uma iniciativa pessoal
da ministra, prova-o (caso fosse necessário), o facto de o primeiro-ministro
ter confirmado explicitamente, na Assembleia da República, o seu conhecimento,
em resposta ao BE.
Piruetas à esquerda e à direita
O que se seguiu depois foi pouco edificante, mas
exemplar quanto ao contorcionismo dos processos e à falta de convicções e
hipocrisia ideológica.
O BE aproveitou a deixa para publicar de imediato a
proposta de redacção da ministra ainda antes de concluída a negociação,
pretendendo, talvez, aparecer como primeiro vencedor e amarrar o governo ao que
tinha escrito.
Como resposta, o PS de esquerda ficou «zangado» com a
«habilidade» do BE e passou a PS de direita, mandando às urtigas a memória de
Arnaut e o conteúdo da sua própria proposta.
Argumentando com a falha de lealdade negocial, o
governo carregou no botão privatizador e ligou o discurso passista-troikiano de
Carlos César, retirando tudo o que até aí parecia considerar bom para o povo
português – o fim das PPP e das taxas moderadoras.
Se não parecia dar jeito namorar à esquerda então
talvez fosse de fazer olhinhos à direita, e toca de abrir negociações com o
PSD, cuja proposta, elaborada pelo ex-ministro Luís Filipe Pereira (gestor da
Mello Saúde), defendia praticamente tudo o contrário do que até aí o PS dizia
defender, como se num aparente e teatral arrufo se pudessem jogar decisões
importantes para o futuro do SNS e para a saúde dos portugueses.
O rápido desacordo com as exigências maximalistas e
neoliberais do PSD surge, por isso, como numa cena já ensaiada, porque uma tão
grande reviravolta também podia parecer mal, ou, como disse o conhecedor
Francisco Assis a propósito da vergonhosa trapalhada que tem sido a escolha dos
novos dirigentes da União Europeia, «se há lição a tirar de todo este episódio
é a de que a acrobacia política tem os seus limites».
Por uma vez e também no caso da Saúde, Francisco Assis
tem razão.
E com a voz do GPS eleitoral a dizer para primeiro
virar à esquerda e depois virar à direita, as reversões necessárias dos anos de
política «austeritária» na Saúde vão ficando em águas de bacalhau, enquanto o
descontentamento dos profissionais do SNS cresce, com promessas atiradas para a
próxima legislatura.
«com a voz do GPS eleitoral [do PS] a dizer para
primeiro virar à esquerda e depois virar à direita, as reversões necessárias
dos anos de política «austeritária» na Saúde vão ficando em águas de bacalhau,
enquanto o descontentamento dos profissionais do SNS cresce, com promessas
atiradas para a próxima legislatura»
Para compor o quadro e aproveitando o momento, eis que
aparece um tão oportuno como enviesado ranking classificativo dos Hospitais com
três PPP à cabeça, esquecendo-se que a primeira está acusada de internar
doentes em instalações sanitárias e no refeitório e a outra de falsificar a
classificação das urgências.
O que também não parou de borbulhar foi a argumentação
justificativa do recuo do PS na LBS: porque o Presidente Marcelo (exorbitando
mais uma vez as suas funções) já disse que não deixa, porque é preciso um
«acordo de regime» que crie estabilidade (como se a LBS que se mantém desde
1990 não tivesse sido aprovada só pelo PSD e CDS), porque as PPP são um
pormenor insignificante e ser contra elas é «ideológico» (mas ser a favor já
não é), porque o dinheiro das taxas «moderadoras» faz falta ao orçamento
(esquecendo-se que as taxas como copagamento são proibidas pela Constituição).
Mas então, perguntarão as alminhas mais puras, qual
será a verdadeira razão de todas estas piruetas do governo?
Afinal, a proposta apresentada com o fim das PPP era
só um bluff, para ser depois ardilosamente retirada no decorrer das
negociações? Será que as sondagens e as indicações dos spin-doctors vieram
reavivar as esperanças do PS de se livrar da pressão «constrangedora» (na
expressão do ministro Capoula Santos) do PCP e do BE, procurando a «liberdade»
de uma maioria absoluta conseguida ao «centro», que, nas últimas décadas,
passou a significar a direita tornada «normal» e «sem ideologia» pelo domínio
dos média ligados à área do poder? Ou, depois de ultrapassado o risco de se ver
reduzido à insignificância, como o PASOK (graças a algumas cedências à
esquerda), volta a emergir à superfície o «velho» PS ligado aos interesses do
grande capital, que nele volta a investir?
Provavelmente, é tudo isso e mais alguma coisa,
deixando descalça a sua base social de apoio, que ainda acredita na defesa do
«Estado Social», sem saber em que sentido vai ser usado o seu voto.
Também por isso, quem quiser defender um SNS
universal, geral e gratuito, sem PPP nem taxas moderadoras ou outras
habilidades privatizadoras do género, não terá no PS uma aposta segura.
O melhor é confiar nos partidos à sua esquerda. Até
para forçar o PS a uma política de esquerda. Mas o mais seguro é mesmo apoiar o
mais à esquerda da sua esquerda. A experiência assim o mostra. Sem preconceitos…