DESPACHO: não obstante riscos que, no texto, se não quer (ou se não pode?) pisar e ao não usar determinado e identificador léxico, transcreva-se este escrito dada a sua evidente lucidez e assertividade... para reflexões lentas:
SÉCULO XXI, O SÉCULO DOS TRIBUNAIS,
OU SÉCULO DO ESTERTOR DA DEMOCRACIA?
As negociações, no Parlamento Europeu, relativas ao Acordo sobre o Comércio dos Serviços (ACS, em inglês, TISA), que congrega cerca de 50 países, entre eles os da EU), iniciaram-se em março de 2013, com os votos favoráveis (526), dos partidos da direita e dos partidos socialistas, e a oposição dos partidos de esquerda (111).
O ACS, de entre os seus objectivos, estabelece a aceleração das privatizações em praticamente todas as áreas do comércio e serviços dos países aderentes e a proibição de qualquer forma de nacionalização ou reapropriação pública de não importa que actividade comercial ou de serviços que tenha sido objecto de privatização.
Lembremos o princípio da irreversibilidade das nacionalizações incluído na nossa Constituição em 1976, mais tarde suprimido pelos partidos “do arco da governação” que preparam agora a aceitação do princípio da irreversibilidade das privatizações, não no texto constitucional, sujeito a revisão democrática, mas em tratados internacionais que vão prevalecer sobre a Lei fundamental portuguesa.
Aqueles que ainda conservavam a expectativa de, um dia, sectores estratégicos da economia portuguesa vendidos a preço de saldo para se “reduzir” a dívida pública - que afinal aumentou de 90% para 130% do PIB em 3 anos - poderem voltar à esfera pública para ali cumprirem o desígnio do serviço à comunidade, bem melhor é que se unam e se organizem para não permitirem que o processo da prevalência dos interesses empresariais se consolide sobre os interesses da soberania dos Estados e dos cidadãos.
É que uma empresa privada, operando num sector estratégico para a população, sendo de tal modo mal gerida que implique insuportáveis custos sociais, mesmo assim, o Estado não poderá intervir, pois regerá o princípio de que qualquer modificação do estatuto da empresa deverá operar “dentro” da esfera privada; assim, por exemplo, a “renacionalização” dos CTT, se amanhã a empresa deixar de cumprir o serviço público a que se “obrigou”, será impossível.
Dir - se - á: mas ainda vai correr muita água sob as pontes antes do ACS e do TTIPS (o Tratado Transatlântico), e outros na forja, começarem a produzir efeitos.
Mas já está a correr: a onda de privatizações em Portugal, dos sectores energéticos às águas, da saúde aos aeroportos, da TAP à CGD (lá irão!) revela que as multinacionais estão em campo, “encolhendo” o Estado e utilizando para isso a docilidade, senão mesmo o entusiasmo, dos partidos do arco da governação e dos seus agentes que vão propagando a irreversibilidade do poder das multinacionais sobre os Estados.
Veja-se o que diz o deputado ao parlamento europeu Paulo Rangel no Público de ontem (25.09.2014), a propósito de declarações, no âmbito de uma organização de magistrados, que apontam o século XXI como o século dos tribunais (o século XX seria, assim, o século do poder legislativo/executivo): “a desterritorialização do poder e o fim do monopólio estadual do poder político enfraquecem os centros legislativos e executivos e valorizam o poder judicial como polo de arbitragem e de regulação politico-constitucional dos conflitos sociais”.
Paulo Rangel (PR) está de acordo: o século XXI vai ser o século dos tribunais, porque a “capacidade de afirmação do eixo do poder legislativo – executivo diminuiu francamente - PR”; enquanto deputado ao Parlamento Europeu, ex-deputado ao parlamento português e membro do governo, Paulo Rangel não pode desconhecer que a “captura” dos centros políticos dos Estados pelos grandes interesses (financeiros, conglomerados industriais, químicos, alimentares, armamentistas, etc, estes de facto na génese do ACS, do TTIPS e quejandos), gerou a origem da redução da “capacidade de afirmação do eixo do poder legislativo – executivo” dos países; e não pode desconhecer que, para o conseguirem, tais interesses contaram sempre com a colaboração infamante de deputados, nos parlamentos, e de ministros, nos governos dos Estados onde operam, em iniciativas contrárias aos interesses de quem os elegeu ou designou.
Parece, assim, não ser preocupante, antes natural, para um qualquer democrata, a perda de substancia dos poderes legislativos e executivos nas sociedades democráticas, ou quando se se descarta a prioridade do reforço e da consolidação da casa da democracia (o Parlamento) e a prioridade do reforço e fiscalização da acção governativa, dentro do quadro constitucional e do respeito pelos cidadão; eis, assim, a defesa da teologia da inevitabilidade do declínio dos poderes do Estado, da lógica da propriedade/acumulação e da sua prevalência e da consequente perda de direitos cívicos e políticos das pessoas.
E esta defesa, respaldada no conforto da máxima liberal de que os mercados tendem sempre para o equilíbrio e para o pleno emprego e no delirante efeito de “compensação salvífica” dos tribunais que, “emergindo” no século XXI (“valorizados” através de uma mexida “nos pilares da sua legitimidade - PR”, obviamente!), harmoniza-se já, em Portugal, com o grande número de tribunais suprimidos, ao mesmo tempo que as custas judiciais aumentaram escandalosamente e o acesso à justiça é crescentemente dificultado.
Entretanto e simultaneamente, a “onda” da desjudicialização alastra através da criação e funcionamento de tribunais arbitrais, em passo ultra-rápido e acertado com o “imperativo” incontornável de se obter a condenação fatal do Estado e o ganho das empresas dominantes.
Mas com o ACS e o TTIPS, apoiados pela maioria dos deputados europeus, nem ao que “resta” dos tribunais judiciais sobrará grande coisa: espoliados de legitimidade para dirimirem conflitos entre multinacionais e os Estados, matéria reservada aos tribunais arbitrais, os tribunais judiciais, no século XXI, ainda vão ficar mais imersos no estatuto de soberania limitada, remexendo em bagatelas e, claro, aplicando as leis que punirão a “des-ordem” provocada pela inexorabilidade da “natural” e crescente incapacidade “de afirmação do eixo legislativo – executivo”.
E mesmo que, episodicamente, aumente o “circo mediático” à volta de casos em que haja “biqueiradas” dentro de um bloco central superficialmente desavindo (mas sempre consolidado enquanto bloco dos interesses), o circo mediático, justicialista e antidemocrático assinalará, não a vitalidade, mas o real declínio dos tribunais.
Vai, assim, a democracia do século XXI, nos seus três pilares, legislativo, executivo e judicial, escorregando no plano inclinado que, simultaneamente, descolora e esvai cada um dos pilares… até à extorsão total dos seus poderes, perante a mansidão dos eleitos e a perplexidade dos cidadãos transformados em ordeiros produtores e consumidores, sem direitos, sem liberdades, sem garantias.
Rui Coelho e Campos
Advogado