domingo, novembro 02, 2014

Cruzamento de bio grafias - 2

2. … “passou-se!”, mas não se passou…          

Estas recordações – de há mais de 40 anos e de há 10 anos – vêm a propósito de um texto de Pacheco Pereira lido no Público de ontem. Tenho-o lido e “ouvisto”, nestes últimos tempos, com alguma tranquila surpresa. Nada alvoroçada. Sempre o vi como homem atento e culto, inteligente e lúcido. Mesmo nos momentos de mais aberta contradição (a meu critério, claro) com estas qualidades. Mas a vida – e cada um de nós… – é feita de contradições.
Como comentador, particularmente no inglório esforço de quadratar o círculo (ou de circular o quadrado…) de que é o único residente original desde os tempos da rádio com representação do PCP, PS, PSD, tem vindo a dizer coisas certas e certeiras, das que entram pelos olhos dentro (de quem os tiver abertos…).
Mas este sábado… passou-se. Ele o escreveu e assinou.

«()Passei a semana a ver os nossos governantes vestidos com a farda da Mota Engil; passei a semana a aturar o Portas a saracotear-se no México com uma corte de jornalistas com a viagem paga para lhe darem espaço televisivo todos os dias, primeiro ia almoçar com o Carlos Slim (soam as trombetas), depois o Slim não apareceu (flautim); passei a semana a ouvir o ministro da Economia a elogiar uma subida de Portugal num ranking  em que afinal desceu; passei a semana a ouvir mentiras sobre o Orçamento do Estado, a ouvir mentiras sobre o BES, a ouvir mentiras sobre as previsões económicas, tão ficcionais como a fada dos dentinhos; passei a semana a ouvir o primeiro-ministro a ler um discurso escrito que negou logo a seguir quando passou à oralidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo dizer coisas diferentes com intervalo de minutos, ainda por cima sobre o bolso de centenas de milhares de pessoas (quem é que liga a isso?); passei a semana a ver um enorme vazio onde devia estar a oposição, com António Costa a comportar-se como primeiro-ministro putativo, em vez de assumir o papel de líder da oposição que é o dele até ganhar eleições; passei a semana a assistir àquela cena patética, de verdadeiros “amarelos”, na UGT, a dar legitimidade ao Governo que mais combateu o mundo do trabalho, com Passos Coelho fustigar os trabalhadores num cenário “sindical”; passei a semana a ver imagens de Nuno Crato passeado pela UGT a bater palmas como se o masoquismo na moda fosse engolir alegremente uma manifesta provocação; passei a semana a ler jornalistas preguiçosos a repetirem os argumentos do poder sobre como foi bom o negócio do Novo Banco, passando do tudo ao nada no BESA, de como não é importante o chumbo do BCP nos testes de stress, como está sempre tudo bem quando os interlocutores são os que importam, os do clã, os que estão no “lugar certo” de Portugal, empresas, bancos, gestores, povo da economia “empreendedora”; passei a semana a ver sempre proteger os que mandam, Passos, Maria Luís, Carlos Costa, Stock da Cunha, e a considerar que tudo o que eles fazem é o “menos mau”, o “que podia ser feito”, uma “boa solução num contexto difícil”, etc., etc.; passei a semana a ver comparar realidades más com previsões boas, como se fossem a mesma coisa; passei a semana a ouvir silêncios, sobre as últimas estatísticas da pobreza, das penhoras, das dificuldades económicas, aquilo que não interessa ao “Portugal positivo”; passei a semana a ver apontar uns putativos culpados pela “sabotagem” do Citius, quando durante meses ouvimos técnicos sobre técnicos, distintos professores (será que Tribolet também faz parte da conspiração sabotadora?) a dizer que aquilo era desastre certo; passei a semana ver imagens de cãezinhos de Pavlov a abrir os dentes ao som de “Sócrates”, como se o homem ainda estivesse no poder, para esquecer que de 2011 a 2014 foram outros que aprofundaram as desgraças que ele deixou, numa indigência política assustadora do que vai ser o ano de 2015; passei uma semana a ouvir tudo o que era gente séria a contar como está a ser cheio o Estado, as fundações ligadas ao Governo, as empresas, tudo quanto é lugar seguro e bem pago e com poder, de “amigos do ajustamento”, da turma da “justiça geracional”, sem parangonas, sem publicidade, agora cada vez mais depressa, porque se aproximam tempos difíceis e o PS vai querer o seu quinhão; passei a semana a ler histórias muito silenciadas sobre milhares de euros que foram para empresas de comunicação, quase sempre as mesmas, as que trabalham para o Governo, para as empresas do PSI-20, para as autarquias cujos presidentes eram ou são os principais controladores dos aparelhos partidários, do PSD em particular; passei a semana a ouvir dizer que os aviões russos “invadiram o nosso espaço aéreo”, “passaram junto ao nosso espaço aéreo”, “passaram no espaço controlado por Portugal”, “entraram no espaço europeu” (a Rússia é uma nação europeia!), e a ouvir o ministro que mais ajudou a destruir as nossas forças armadas agarrado à oportunidade de dizer que “operacionalmente” estava tudo bem, quando se percebe nas entrelinhas que está menos bem do que parece (quantos F-16 estão canibalizados para dar as peças aos que voam, qual a autonomia real dos que voaram?). Passei a semana a ver com tristeza como está o meu muito amado país. Tudo a cair aos bocados na apatia e indiferença geral.
Chega. Passei-me. Vivam as libélulas!»
José Pacheco Pereira
O PÚBLICO, SÁB 1 NOV 2014
  
"Passou-se" mas não se passou! Veja-se o que ele não vê, ou não é capaz de ver a partir do local em que se coloca e de onde não quer sair. Não vê que não há apatia e indiferença geral, que há luta (e dura, e contínua), que há outra oposição além daquela que ele vê e que tem… um líder, putativo 1º ministro alternante.
Também não se pode ver tudo… Mas que dá “gozo” ler, dá. E, contraditoriamente, muita tristeza ver como está o nosso muito amado País. Que tem a alternativa de uma política patriótica e de esquerda!

3 comentários:

Unknown disse...

Dá gozo ler,como dizes.
Mas,por mais que nos esforcemos,ficamos sempre na penumbra.Por que será?
Nós sabemos e eles também,mas....!

Olinda disse...

Nao se teria passado assim tanto.E a crônica ä volta da fulanizacao,nao ê bem o mesmo de uma crîtica ä polîtica de partidos irmaos e o que defendem.Ainda assim,tambêm me deu gozo ler.

Bjo

samuel disse...

Lá que dá gozo… dá! :-)