2. … “passou-se!”, mas não se passou…
Estas recordações – de há mais de 40 anos e de há 10 anos –
vêm a propósito de um texto de Pacheco Pereira lido no Público de ontem. Tenho-o
lido e “ouvisto”, nestes últimos tempos, com alguma tranquila surpresa. Nada
alvoroçada. Sempre o vi como homem atento e culto, inteligente e lúcido. Mesmo nos
momentos de mais aberta contradição (a meu critério, claro) com estas
qualidades. Mas a vida – e cada um de nós… – é feita de contradições.
Como comentador, particularmente no inglório esforço de
quadratar o círculo (ou de circular o quadrado…) de que é o único residente
original desde os tempos da rádio com representação do PCP, PS, PSD, tem vindo
a dizer coisas certas e certeiras, das que entram pelos olhos dentro (de quem os
tiver abertos…).
Mas este sábado… passou-se. Ele o escreveu e assinou.
«(…)Passei a semana a ver os nossos
governantes vestidos com a farda da Mota Engil; passei a semana a aturar o
Portas a saracotear-se no México com uma corte de jornalistas com a viagem paga
para lhe darem espaço televisivo todos os dias, primeiro ia almoçar com o
Carlos Slim (soam as trombetas), depois o Slim não apareceu (flautim); passei a
semana a ouvir o ministro da Economia a elogiar uma subida de Portugal num ranking em que
afinal desceu; passei a semana a ouvir mentiras sobre o Orçamento do Estado, a
ouvir mentiras sobre o BES, a ouvir mentiras sobre as previsões económicas, tão
ficcionais como a fada dos dentinhos; passei a semana a ouvir o
primeiro-ministro a ler um discurso escrito que negou logo a seguir quando
passou à oralidade, como se fosse a coisa mais natural do mundo dizer coisas
diferentes com intervalo de minutos, ainda por cima sobre o bolso de centenas
de milhares de pessoas (quem é que liga a isso?); passei a semana a ver um
enorme vazio onde devia estar a oposição, com António Costa a comportar-se como
primeiro-ministro putativo, em vez de assumir o papel de líder da oposição que
é o dele até ganhar eleições; passei a semana a assistir àquela cena patética,
de verdadeiros “amarelos”, na UGT, a dar legitimidade ao Governo que mais
combateu o mundo do trabalho, com Passos Coelho fustigar os trabalhadores num
cenário “sindical”; passei a semana a ver imagens de Nuno Crato passeado pela
UGT a bater palmas como se o masoquismo na moda fosse engolir alegremente uma
manifesta provocação; passei a semana a ler jornalistas preguiçosos a repetirem
os argumentos do poder sobre como foi bom o negócio do Novo Banco, passando do
tudo ao nada no BESA, de como não é importante o chumbo do BCP nos testes de
stress, como está sempre tudo bem quando os interlocutores são os que importam,
os do clã, os que estão no “lugar certo” de Portugal, empresas, bancos,
gestores, povo da economia “empreendedora”; passei a semana a ver sempre
proteger os que mandam, Passos, Maria Luís, Carlos Costa, Stock da Cunha, e a
considerar que tudo o que eles fazem é o “menos mau”, o “que podia ser feito”,
uma “boa solução num contexto difícil”, etc., etc.; passei a semana a ver
comparar realidades más com previsões boas, como se fossem a mesma coisa;
passei a semana a ouvir silêncios, sobre as últimas estatísticas da pobreza,
das penhoras, das dificuldades económicas, aquilo que não interessa ao
“Portugal positivo”; passei a semana a ver apontar uns putativos culpados pela
“sabotagem” do Citius, quando durante meses ouvimos técnicos sobre técnicos,
distintos professores (será que Tribolet também faz parte da conspiração
sabotadora?) a dizer que aquilo era desastre certo; passei a semana ver imagens
de cãezinhos de Pavlov a abrir os dentes ao som de “Sócrates”, como se o homem
ainda estivesse no poder, para esquecer que de 2011 a 2014 foram outros que
aprofundaram as desgraças que ele deixou, numa indigência política assustadora
do que vai ser o ano de 2015; passei uma semana a ouvir tudo o que era gente
séria a contar como está a ser cheio o Estado, as fundações ligadas ao Governo,
as empresas, tudo quanto é lugar seguro e bem pago e com poder, de “amigos do
ajustamento”, da turma da “justiça geracional”, sem parangonas, sem
publicidade, agora cada vez mais depressa, porque se aproximam tempos difíceis
e o PS vai querer o seu quinhão; passei a semana a ler histórias muito
silenciadas sobre milhares de euros que foram para empresas de comunicação, quase
sempre as mesmas, as que trabalham para o Governo, para as empresas do PSI-20,
para as autarquias cujos presidentes eram ou são os principais controladores
dos aparelhos partidários, do PSD em particular; passei a semana a ouvir dizer
que os aviões russos “invadiram o nosso espaço aéreo”, “passaram junto ao nosso
espaço aéreo”, “passaram no espaço controlado por Portugal”, “entraram no
espaço europeu” (a Rússia é uma nação europeia!), e a ouvir o ministro que mais
ajudou a destruir as nossas forças armadas agarrado à oportunidade de dizer que
“operacionalmente” estava tudo bem, quando se percebe nas entrelinhas que está
menos bem do que parece (quantos F-16 estão canibalizados para dar as peças aos
que voam, qual a autonomia real dos que voaram?). Passei a semana a ver com
tristeza como está o meu muito amado país. Tudo a cair aos bocados na apatia e
indiferença geral.
Chega.
Passei-me. Vivam as libélulas!»
José
Pacheco Pereira
O PÚBLICO,
SÁB 1 NOV 2014
"Passou-se" mas não se passou! Veja-se o que ele não vê, ou não é capaz de ver
a partir do local em que se coloca e de onde não quer sair. Não vê que não
há apatia e indiferença geral, que há luta (e dura, e contínua), que há
outra oposição além daquela que ele vê e que tem… um líder, putativo 1º ministro alternante.
Também não se pode ver tudo… Mas que dá “gozo” ler,
dá. E, contraditoriamente, muita tristeza ver como está o nosso muito amado
País. Que tem a alternativa de uma política patriótica e de esquerda!
3 comentários:
Dá gozo ler,como dizes.
Mas,por mais que nos esforcemos,ficamos sempre na penumbra.Por que será?
Nós sabemos e eles também,mas....!
Nao se teria passado assim tanto.E a crônica ä volta da fulanizacao,nao ê bem o mesmo de uma crîtica ä polîtica de partidos irmaos e o que defendem.Ainda assim,tambêm me deu gozo ler.
Bjo
Lá que dá gozo… dá! :-)
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