segunda-feira, agosto 27, 2007

postalinhos

Mas hoje, sim!
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Hoje, escrevo.
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E começo por dizer que se todos os mortos são nossos, o que aceito, isso pode levar a que nenhuns mortos nossos são.
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Todos os mortos são nossos, sim, porque nós somos todos os que vivos são e foram, porque cada ser humano que morreu e morre somos nós, também, que morremos nele, mesmo que a desconheçamos, que em nada essa morte nos afecte, mesmo que ela nos seja indiferente afectivamente.
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Mas, por isso, também nem todos os mortos são nossos.
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Diria até que, a não ser assim, cada morte (anónima ou não), todas as mortes, seriam sentidas por nós como uma perda, sofrê-las-iamos, e seria insuportável a vida.
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Por isso, nossos nossos, nossos numa outra dimensão, são aqueles mortos de que nós sentimos o seu desaparecimento físico como uma perda irreparável, por esse ser humano que desaparece ser único, insubstituível (para nós, ou para a humanidade tal como a queremos).
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Assim o sinto, e não pretendo, de modo nenhum, que alguém outro o sinta como eu.
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Até porque o homem perante a morte – a sua, mas não só – é… pessoal e intransmissível!
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Mas assim sinto (e penso), e tenho o direito de o dizer, de o afirmar, ao mesmo tempo que, não pretendendo que alguém outro como eu sinta (ou pense), ache estranho que outros que como eu pensam assim não sintam, ou traduzam o que sentem de forma tão discordante da minha.
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Longa a reflexão, as elucubrações?
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Talvez…
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Mas se este homem, que ontem (ou anteontem) morreu foi alguém que, na sua vida, em determinado momento se atrelou a uma carroça, aderiu a um grupo, afirmou partilhar uma ideologia, se colocou num lado da trincheira e… e logo que se apercebeu que a carroça não era dourada e o piso nada favorável lhe era para o caminho, que no grupo havia quem, apesar disso, não abandonava o trilho e até novos e novos reforçavam a equipagem, se negou a ideologia que, intelectual, não podia deixar de conhecer e ponderar e a que aderira, se passou, de armas e bagagens para o outro lado da fronteira, posso lamentar a morte e, até, se acaso os conhecesse, afirmar solidariedade com a sua família e os seus próximos... mas por aí me ficaria.
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Para mais, se, depois desse momento, em que só como oportunista se pode catalogar o seu comportamento, esse mesmo homem, sempre que oportuno e também quando inventava oportunidades, se servia dos meios à sua disposição para atacar o grupo em que estivera de passagem, a luta dos que episodicamente acompanhara, para servir de ponta de lança da insinuação, da calúnia, da mentira que intenta diminuir, desprezar, ridicularizar, destruir a ideia, o pensamento, a ideologia que chegara a abraçar por erro de cálculo, não me curvarei sobre a sua memória.
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E não o aceito como nosso morto.
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Falemos de cultura.
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Será ela neutra, como querem que o sejam as técnicas, a política, o Estado?
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Eu digo que não, que tem um sinete de classe.
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Que vale o argumento de que este homem era um homem de cultura?
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Que etiqueta é esta de “homem de cultura”?
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De que cultura?
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Usada para quê?
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Ao serviço de quê?
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E, por último, é bom perguntarmo-nos se o “prestígio” e a "notoriedade" e a "notabilidade" de quem morreu não eram devidos, também e muito, a ter sido tão persistentemente, tão sectariamente, anti-comunista.
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Quero eu dizer, com isto…, que quem não pensa como eu, quem não defende o que eu defendo, quem não luta como eu luto, não merece, nem mesmo depois de morto, a tolerância de ter pensado diferente de mim, ter defendido outras coisas, ter tido outros valores, ter lutado de outras maneiras, tolerância e respeito adicionados ao respeito que todos os mortos merecem.
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Alto aí!
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De maneira nenhuma.
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Tenho dentro de mim, no meu cemitério interior, mortos que pensavam diferente de mim, que lutavam noutras trincheiras, que se batiam de outra maneira.
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Tudo o que penso, e digo, sobre este morto sobre que ontem não falei e sobre que hoje escrevo, é sobre este morto.
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Que, podendo parecer que não, respeitei e respeito (e até admirei e admiro pelo que dele me chega de alunos e alunas seus, como professor), como ele, desconhecendo-me (naturalmente), nunca me respeitou, porque desrespeitou o que sou.
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Não por estar em desacordo com o que sou, mas por o estar sectariamente… ou de outra maneira ainda pior, por vindicta nem se sabe de quê.
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E, por o ter respeitado enquanto vivo, e por o respeitar na sua morte, não escrevi nada, ontem, do que me senti provocado (não pessoal, nem intencionalmente, claro!) a escrever, nestes dias da sua morte,
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No entanto, hoje, encerrando o episódio e desabafando, não sou capaz de calar o que o camarada Cid Simões, em comentário, sintetizou: hipocrisia, não.
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E, muito menos, aceitar sem reagir aquilo que, vindo de quem vem, que não é hipócrita, possa ser tomado por outros por hipocrisia.
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É um facto!, a notícia, a ideia, a proximidade, a presença da morte, perturba.
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Se quiserem - quem quiser - tomem estes postalinhos como prova disso.

5 comentários:

Maria disse...

Não vou comentar estes postalinhos, da mesma forma que não comentei o acontecimento como o aqui descreves.
Mas devo dizer-te que estes postalinhos me fizeram pensar, e muito, na ausência de vida (não gosto da outra palavra), nas situações em que acontece de uma forma brusca.... tantas vezes antes de tempo...

Deixo-te um abraço

Anónimo disse...

"Ora aqui está um comentário equilibrado...", dit-elle dali.
Talvez o meu "post" não o tivesse sido, talvez... Pelo menos não o foi na dimensão, mas foi transcrito sic de uma espécie de diário. E tinha de dizer isto!
Há coisas para que é preciso coragem (e não me estou a vangloriar!).
Adiante...

GR disse...

Este "postalinhos" cheio de reflexões e considerações foi escrito com muita honestidade, demonstrando grande coragem!
Uma figura pública como tu e tantos outros, hoje em dia nem todos têm a audácia de escreverem o que sentem, sobretudo de uma figura pública.
Parabéns, pela integridade deste magnífico texto.

GR

Anónimo disse...

Pouco mais há a dizer. Neste como noutros casos não se trata de uma atitude pessoal, nós temos uma grande responsabilidade perante os que aceitaram que lutássemos a seu lado e não podemos deixar a mínima suspeita de que os traímos. Não é choro é lamúria o que oiço por aí.

Anónimo disse...

Pior que um cego é aquele que não quer ver. Mudar de opinião na vida é um sinal de lucidez. Tenho pena daqueles que vivos, mais mortos são do que os que estão.