quinta-feira, junho 16, 2011

Leituras e releituras – José Gomes Ferreira – 3, com Cesário Verde para logo logo

Ler. Reler. Leituras desencontradas. Que, agora, se cruzaram. Por acaso? Talvez.
José Gomes, na Memória das Palavras, ao lembrar a sua passagem pelo Batalhão Académico, grupo de universitários criado para a “campanha contra a Monarquia do Norte, na lamentável guerra civil que se seguiu à ditadura sidonista”:

«… a minha passagem por esse batalhão de voluntários enriqueceu-me de ensinamentos profundos, mesmo cingindo-me à mera aquisição de experiência de vida, sempre benéfica a um rapaz de 19 anos até então não habituado a escalavrar os pés em marchas forçadas no Inverno ou a assistir a fantásticas aparições de piolhos nas casernas nojentas, inçadas de parasitas (…) com a missão de guardar a linha férrea do Vale do Vouga.
(…)
O deslumbramento do cenário envolvente de penedias, pinheiros e córregos penetrou-me até às células mais fundas. Tudo tão diferente da apoteose da brancura campestre de Júlio Diniz! Digam-me lá onde paravam as moçoilas do Sr. Reitor? E as moleiras que punham por garridice farinha nas faces besuntadas de suor de canseira? E os aventais bordados a ouro e mentira?
(…)
Só negridão por fora e por dentro em tugúrios fétidos: Só porcos, tojo, bosta, tremedais mal-cheirosos e sendas íngremes entre brenhas que, aviado o nosso serviço de vigilância matinal a coisa nenhuma, trepávamos de espingarda ao ombro para explorar os lugarejos nos cocurutos dos montes construídos em redor das capelas – fontes evidentes e únicas da escassa vida moral, espiritual, social e artística daqueles pobres bichos quase vegetativos. Lá os lobrigávamos, curvos de trabalho, nem alegres nem tristes, sujos apenas e afundados na Morte Totalitária duma religião misericordiosa que explica o Universo com uma palavra (que cada qual enche como pode) e oferece a desforra do Céu à miséria transitória dos humildes da Terra.
Mercê desse contacto com a realidade, despida das boas intenções republicanas, cmpreendi a sério a força terrivelmente humana e, até certo ponto, justificada da Igreja com este mundo e o outro às ordens; e acudiram-me à memória aqueles famosos versos de A Velhice do Padre Eterno de Junqueiro (sátira que alguns patetas consideraram anticatólica e anticristã) e eu recitava de cor desde miúdo:
Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga
Que andais de sol a sol na terrar a mourejar,
Roubar-vos da voss’alma a vossa crença antiga
Seria como quem roubasse a uma mendiga
As três achas que leva à noite para o lar
(…)
Pouco a pouco comecei a tomar consciência deste reparo que me gelou os olhos e a boca: o mundo camponês nada tinha a ver com o nosso, como bem o provava a indiferença, o desprezo inteiro, a incompreensão, o desconhecimento mesmo da gente rústica a respeito da guerra que naquele instante se travava no País entre monárquicos e republicanos.
Monárquicos? Republicanos? Viva a República?... Miravam-nos com suspeição de olhos caídos dum planeta distante. Não entendiam. (Mais tarde essa Indiferença convenientemente desviada para a resignação à pobreza e mantida com sonhos medianos, tornou-se doutrina oficial).
… Mas a minha mentalidade de pequeno-burguês (…) doía-se ao verificar essa anomalia absurda de assistir ao povo a desdenhar de ser povo. A recusar a honra de representar o papel que lhe tinham distribuído no Drama.
Que se passava? (Agadanhava os cabelos com a suspeita nítida de desmoronamento próximo de ideias feitas.)»
(pp. 78-81 de A memória das palavras,
edição de 1968, Portugália Editora)

Ideias feitas. Doutrina oficial. E este nosso tempo (ainda o mesmo mas já outro) de ideias feitas, doutrina oficial e pensamento único?!
Tinha a intenção de fazer, já neste “post”, a ligação a Cesário Verde (a Em Petiz e noutros poemas), mas a força desta transcrição, o verdadeiro desafio que estes trechos nos fazem a que paremos e reflictamos obrigam-me a não cumprir a intençã. A adiar Cesário Verde para outro “post”. Pelo muito respeito, pelo enorme respeito por Cesário e por José Gomes.

3 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Que bem aproveitas o descanso!!!
Sobre este extraordinário post eu queria dizer muita coisa e não sei dizer nada.Apenas relembro que Júlio Diniz foi dos primeiros grandes autores portugueses que eu li e me fascinou. Era muito nova,mas ainda hoje o releio porque apesar do bucolismo também nos mostra o que foi a revolução liberal em Portugal, além de outras coisas.Guerra Junqueiro era o poeta preferido do meu pai.
Cesário Verde conheço mal. Apenas alguns poemas do Livro.
Tantas ideias me surgem ,mas não consigo transmiti-las.
Ando cansada.

Um beijo e continua o teu óptimo descanso para teu e nosso bem

samuel disse...

Grande texto!
«Agadanhava os cabelos com a suspeita nítida de desmoronamento próximo de ideias feitas»... é extraordinário!

Abraço.

Fernando Samuel disse...

Este Zé Gomes não tem emenda: é sempre genial...

Um abraço - e bom descanso...