sexta-feira, novembro 10, 2017

Reflexão lenta... e geringonçada.

GERINGONÇADA

Alguém de inventiva fértil e verbo fácil foi buscar, ao seu prolixo bric-à-brac, o vocábulo geringonça. Dele se serviu, achando-se graça, para apostrofar a solução encontrada no contexto parlamentar e nas condições criadas pela intervenção de Jerónimo de Sousa, no caudal das primeiras reacções aos resultados eleitorais das legislativas de Outubro de 2015.
Esse alguém (que os negócios já lá têm… como sempre tiveram!), que junta à criatividade léxica intenções das que forram o inferno, quis ironizar – ou melhor: ridicularizar – a fórmula encontrada no naipe, também simplificado ou simplista, de extrema-esquerda, esquerda, centro esquerda, centro direita, direita com uma pequena mancha verde no lado esquerdo e uma outra ainda mais pequena de cor incerta colocada entre os centros[1] em que se encontrava a Assembleia que é da República e eleita tinha sido. Com rangeres de dentes e manigâncias infrutíferas de escavacado Presidente da República, então de saída de palco pela porta da direita mais baixa.
Usando esta etiquetagem (com pinças, isto é, com aspas), “geringonça” teria sido uma imagem da fórmula negociada, entre-partes, da maioria de deputados que estava do lado esquerdo da direita empoleirada. Seria – e foi – a maneira provisória e desequilibrada de apoiar um executivo (o governo e sua “governança”, que é o que conta para esse alguém e para os de sua estirpe), previsivelmente condenada a depender de uma caranquejola[2] ou engenhoca de mau funcionamento e triste fim.
O facto é que, arrostando ironias e ridicularizações, predições e maldições, contra ventos e marés, incêndios e tragédias, incomodando seriamente mesmo quem hipocritamente “faz que sim mas que também…”, a “coisa” tem andado. Bem? Depende de quem (e do lado que) observa e avalia. O facto é que, com o tempo foi virando em aceitável – e, depois, até em simpático – o que tinha, no criador, intenção pejorativa.

Ao que é que isto vem? Pois vem ao facto de, por ter resistido, a tal de geringonça (dispensa as aspas…), começou a ser, também, um espectro que assusta quem, no atapetado e acolchoado dos gabinetes, quer aproveitar os desmandos do mundo, passou a alvo a abater pelo grupo dos padrinhos do anátema e seus divulgadores. Não pelo que se diz (errada mas não ingenuamente) ser – uma “aliança das esquerdas” – mas por quem a compõe, por incluir, entre as peças desconjuntadas, representantes de corrente de pensamento e acção que vem, desde 1848 (e antes de tal ter sido manifestado nessa data…), a ser espectro assustador.
E, além do apodo como intuitos escarnecedores, é notório, embora tão invisível quanto possível, o assédio e enleio aos outros parceiros ou parceiras para os separar de tal companhia e mai-las suas nefastas influências. Particularmente nas acções (orçamentos e tal) que ela possa condicionar e nas ideias que possa inocular nos ditos parceiros e (bem pior ainda…) nas massas a que possa levar conhecimento, ideologia, consciência. De classe.
Porque é ai que está a fronteira a não pisar. A que separa as classes, o salário do lucro, a moeda-meio de troca material da fidúcia financeira que deixou de merecer qualquer confiança porque imaterial e viajante por areias movediças e de off-shores.
Começou logo por se apregoar surpresa e novidade. Como se nunca os comunistas (e aparentados) e os sociais-democratas que se crêem e querem de esquerda (alguns a prazo e períodos curtos) tivessem feito acordos ou participado lado-a-lado em coisas parecidas com a apelidada geringonça, como “inimigos íntimos” que seriam, ou assim os disseram sempre inventivos. O que nem é preciso ir para lá do rectângulo ou andar muito atrás no tempo para desmentir. E se ilustra com as “uniões de esquerda” em França, ou os casos caseiros do Serviço Nacional de Saúde (aprovado pelos votos PS-PCP-UDP em 1979 contra o lado direito do hemiciclo), ou os anos lisboetas de acordo a dois a que o PCP trouxe o PS.
É certo que as memórias são para não se perder, sobretudo pelo PCP (ou PCF) sempre em risco de descartado depois de servir de trampolim para o poleiro onde os sociais-democratas exercem a sua vocação de se afirmarem de esquerda e fazerem política de (ou com a) direita. Pelo não pode haver distracções com tais parceiros e há que manter a memória sempre fresca. Exigindo respeito pelas identidades, e recusando o papel de tapetes em que se limpem os chanatos, única forma de continuarem de vermelho vivo as cores de todos os adereços.

E, de novo, vem isto a propósito de quê? Pois vem a propósito das recentes autárquicas. Usadas pela “informação ao serviço” para, aproveitando os resultados, se procurar fazer leituras que contribuam para ou se degeringonce ou recriar geringonças a dois, ou a três ou a quantos (e quais) os precisos… mas dispensando sempre o “mau da fita”.
Muito se tem tentado, através de analogias enviesadas, tomar o que foi usado para a Assembleia da República – e que só para esta poderia servir – como modelo ou bitola e, assim, mostrar que não funciona, ou que funcionaria mas sem a peça perturbadora sob a forma de CDU/PCP-PEV.
No Poder Local, nas autarquias, o executivo é a câmara, com um presidente e vereadores (ou a junta), e que fique claro que, se houvesse alguma possibilidade de analogia com o Poder Central, seria com o governo, com o 1º ministro e os seus ministros, e não com a AR. Ora no governo não entrou a geringonça, porque o PCP não quis – nem quer – vir a entrar. Embora haja quem não pense noutra coisa…
Se alguma outra analogia se pretendesse fazer, e que tivesse um mínimo de verosimilhança, seria entre a AR[3] e as assembleias deliberativas. Mas teria de se forçar muito e, para cada caso, isto é, para cada município, haveria que encontrar a fórmula geringonçada adequada.

É evidente, e seria estultícia escondê-lo, que esta é uma perspectiva. É a visão de quem tem da História a leitura da luta de classes. Visão que outros anatematizam (e contra a qual atiçam raios e coriscos), como é de sua classe, peremptórios na negação de classes e de luta entre elas, mas que praticam esta continuamente e, tantas vezes, com eficácia e desmesurada violência.
Pelo nosso lado, confessa-se alguma tristeza momentânea pelos resultados eleitorais das autárquicas. Não poderia ficar-se indiferente à perda de maiorias CDU em concelhos como Almada, Beja, Peniche – nossos verdadeiros símbolos – e mais quedas em tantos outros lugares, mas o que mais deve fazer pensar – e alertar! – são os porquês, as causas e o aproveitamento que está a ser feito para renovadas (e ridículas) certidões de óbito passadas ao PCP, para a promoção de acordos (diria conluios) a torto e a direito, ou seja, entre sociais-democracias e esquerdas-tortas e/ou as direitas de diferentes calibres, numa estratégia de classe de quem nega a luta de classes e, assim, procura atirar-nos fora de carroças geringonçadas e diminuir a nossa (da outra classe e suas organizações) influência na correlação de forças.
Cá estaremos!  
... e há mais!

  





[1] - Correspondendo essa etiquetagem a disposição dos partidos e grupos no espaço do anfiteatro parlamentar, usaria outra (minha!) semântica: esquerdalhos e esquerdinhas, esquerda consequente e com componente ambiental, social-democracia com reminiscências esquerdizantes, social-democracia anti-socialismos (salvo os democraticamente burgueses), democratas-cristãos com a alcunha de sociais democratas que hifenizam com obsoleto labéu popular-democrata, cristãos-democratas puros e, por último ou de resto, os precários ou indefinidos ou em trânsito.
[2] - Lembra-se o poema de Mário Sá Carneiro
[3] - para que a fórmula foi concebida e teve resultados positivos pelo que travou e pelo que permitiu recuperar – objectivamente, embora com “contabilidades”várias e outros contares – na situação dos trabalhadores e de todo o povo português.

1 comentário:

Olinda disse...

Uma reflexão lúcida e inteligente,sobre a qual estou completamente de acordo!Li-a duas vezes,medindo cada frase.Bjo