- Nº 2572 (2023/03/16)
Novilíngua
Quando Orwell publicou o seu famoso 1984, em meados do século passado, o futuro sombrio imaginado pelo autor britânico serviu de arma psicológica na Guerra Fria do Ocidente capitalista contra o Leste a dar os primeiros passos na construção do socialismo. A realidade encarregou-se de demonstrar que o Big Brother, o pensamento único, o 2+2=5 (na vertente actual das fake news), eram afinal apanágio da dita civilização ocidental e hoje, quase 75 anos depois, o livro ganha nova actualidade, com a Inglaterra, que ironia, na vanguarda da edificação de um Ministério da Verdade que modifica obras para as pôr conforme com a mentalidade vigente do «politicamente correcto».
Na berlinda estão as obras de Roald Dahl, célebre escritor britânico autor de livros infantis tão populares como Charlie e a Fábrica de Chocolate ou Matilde, que a editora Puffin Books decidiu modificar para as expurgar da «linguagem ofensiva». Baseando-se em critérios estabelecidos sabe-se lá por quem, deixa de haver gordos, pequenos homens ou homens nuvem, e passa a haver brutos,pequenas pessoas ou pessoas nuvem. Até a referência ao uso de perucas é visado: apontadas em As Bruxas como servindo para esconder a careca, na nova edição acrescenta-se nova explicação: «Há muitas razões pelas quais uma mulher pode usar uma peruca e certamente que não há nada de errado nisso.» É quase hilariante.
A mesma sorte espera a obra de Ian Fleming, autor do 007, que vai ser revista para remover referências consideradas racistas ou ofensivas.
A iniciativa faz lembrar outra, mais antiga, de um procurador do Ministério Público Federal brasileiro que há mais de uma década intentou uma acção contra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. E porquê? Porque nas acepções para a palavra «cigano», o dicionário, cumprindo a sua função, além das definições correntes, refere as de sentido pejorativo, assim as identificando, tais como «trapaceiro» e «velhaco». O procurador, adepto da borracha, considerava isto ofensivo, preconceituoso e racista.
É a novilíngua imaginada por Orwell, destinada a adulterar registos tidos por inapropriados para dar a impressão de que nunca existiram. É a construção deliberada de buracos da memória, o reescrever da história ao sabor dos ditames do presente. É a imposição de uma «normalidade» bem mais grave do que a censura, fomentando o «duplipensar» de Orwell, que faz com que se aceite duas crenças contraditórias ao mesmo tempo, sem ter noção de que se trata de uma contradição. Glorifica-se a verdade mentindo deliberadamente, do Iraque à Síria, da Palestina ao Afeganistão, do Kosovo à Líbia, do Vietname a Cuba.
Como no mundo distópico de Orwell, Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força. Benvindo às fogueiras do século XXI.
Anabela Fino
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